Lá por 1967, li, lembro-me bem, que Arnold Joseph Toynbee, o historiador inglês do século passado (não confundir com o tio dele, Arnold Toynbee), previa um mundo predominantemente secularizado e ateu, no final do século 20 e começo do século 21.
O tempo mostrou – e mostra – com sobejos exemplos, que Toynbee estava errado. Assim como constatei no final de abril, em Roma, quando lancei, ‘in loco’, meu olhar sobre uma forte manifestação de fé. Eis o meu relato, cuja primeira parte escrevo hoje:
João Paulo II E João XXII
Voltei dia 3, sábado, de curta viagem a Roma, sete dias, tempo suficiente proporcionado pelos amigos Belmiro Valverde Jobim Castor (in memoriam) e Elizabeth Castor, para que participasse da histórica canonização de dois papas, homens com papéis impressionantes no mundo, nos séculos 20 e começo deste século: João XXIII e João Paulo II.
Não há como fugir de certos adjetivos. Assim, digo que foi espetáculo impressionante, 800 ou um milhão de pessoas (quem sabe?) disputando palmo a palmo o espaço da Praça de São Pedro e vizinhança. Eu, por exemplo, não consegui passar da Ponte dos Santos Anjos, que fica defronte ao castelo do mesmo nome, entrada para o território do Vaticano.
Acontece que muitos cristãos de terceira idade, como eu, não tiveram condições de competir com as multidões de jovens do mundo inteiro que dormiram na São Pedro para garantir lugares para a grande celebração em que o papa Francisco se exporia à orbe toda. E havia os lugares reservados às caravanas enviadas por dioceses de centenas de nações.
A cidade, que dizem ter nascido 700 anos antes de Cristo, ficou praticamente voltada, no sábado 26 e domingo 27, para celebrar os dois novos santos do calendário romano.
Multidões – esta é a expressão correta – formavam disciplinadas carreiras de fiéis, algo a lembrar marchas ‘aux flambeaux’: na frente dos grupos disciplinados e orantes, um líder, geralmente o cura/sacerdote, empunhando estandartes de associações religiosas, como a Legio Mariae ou Apostolado da Oração. Ou os estandartes da não menos disciplinada Associação Cavaleiros de Columbus, a poderosa organização leiga católica norte-americana, um dos sustentáculos materiais da Igreja no mundo. Homens jovens, maduros e idosos, basicamente anglo-saxões, de longe eram identificados como “americanos”, por uma certa maneira descontraída de portar-se diante do sagrado e, ao mesmo – o que parece contraditório – cheio de piedade exterior. Em síntese: homens de fé expressa com simplicidade, eis como são os cavaleiros de Columbus.
Os archotes flamejantes eu os enxerguei na fé explícita dos que rezavam em voz alta e cadenciada em latim, polonês, inglês, alemão, português, espanhol, croata, sérvio, chinês, japonês, tangalo, francês, árabe, hindi, português de Goa…
Juro que cheguei a ver uma bandeira da Associação São Pio X, aquela dos católicos tradicionalistas/lefbrevistas, nascida na suíça diocese de Econe. Ainda não acredito no que vi…
Mas com certeza também encontrei padres que um dia pertenceram às hostes de Marcel Lefebvre, agora integrados ao Instituto Bom Pastor, que tem amplo reconhecimento pontifício e direito a celebrar todos os ritos tridentinos, isentos de possibilidades de críticas… Com um deles, francês, cheguei a falar, conversamos sobre a obra, que não prosperou no Brasil, apesar de bem instalada, em São Paulo.
Muito sol, muita reza
Na segunda-feira parti em expedição mais ou menos essencial e de redescoberta do espaço para quem, como eu, visitara Roma pela última vez em 1996.
Fui direto a pontos essenciais. Um deles, a Basílica Papal de São Paulo Extramuros, já fora (por isso, extramuros) da Roma Histórica, no Sul da cidade.
Esse espaço sagrado é mundo à parte, não preciso descrevê-lo, todas as informações sobre a monumental igreja e seus domínios está na Internet.
Basta acessar o Google.
Mas me senti aparvalhado em certos momentos, como aqueles em que fui contemplando a enorme tela que mostra São Paulo caindo – literalmente – do cavalo, na sua conversão, na Estrada de Damasco. No entanto, é na Capela de Santo Estevão, o primeiro mártir, e a quem o apóstolo Paulo muito perseguiu, segundo os relatos das escrituras cristãs, que parei para meditar. E descansar. Com direito, depois de muitas andanças, a encontrar, ao vivo, uma figura histórica o monge Dom Marco.
A mensagem de Dom Marco
Dom Marco não faz parte do “décor” da Basílica. Acho que, alquebrado pela idade, ele se sente útil assim, como fez comigo, pregando sua mensagem.
Conta apaixonadamente a história de sua Estrada de Damasco.
Esse velho beneditino, nascido em 1924, quase totalmente surdo, sentado num canto, pouco antes da Capela de Santo Estevão, sacia apenas parte de minha curiosidade jornalística. Suas respostas são curtas, sintéticas.
Na verdade, ele não está interessado em passar informações de sua comunidade. Mesmo assim fico sabendo que os monges beneditinos que sempre comandaram aquele espaço (do ponto de vista legal, a São Paulo Extramuros é parte territorial do Estado do Vaticano, conforme o Tratado de Latrão e uma das cinco basílicas papais).
Dom Marco não se preocupa com a falta de vocações monásticas, acha até que “as coisas não vão mal”, pois a comunidade tem 5 noviços, um deles africano.
A comunidade toda não passa de 21 religiosos, todos pautados pela Regra de São Bento, o pai do monaquismo cristão do Ocidente, século V.
Mas gerir aquela casa que deve ser tratada como um dos pontos mais visíveis da Santa Eclésia em Roma, e comunidade monástica, casa de monges contemplativos, não é tarefa para qualquer um. Até por isso, o atual abade é um inglês, que celebraria, mais tarde, o ofício das Vésperas (das 18 às 18h30 min) num bom italiano com concessões ao latim, como quando “puxou” um Salve Regina, entoado pela congregação e pelos fiéis que conhecem a liturgia latina. E o porquê de um inglês?
– Nenhum dos nossos monges aceitou o cargo de abade, assegura-me dom Marco, ao mesmo tempo em que começa a me passar textos por ele assinados.
Parecem ser testamentos espirituais, falam de visões que teria tido, de sua conversão na juventude, o conteúdo dos escritos é fortemente espiritual. Por vezes, um certo tom apocalíptico sublinha os textos.
Dom Marco pergunta-me se consigo ler em italiano, em voz alta. Diante de meu sim, passa-me trechos de seus testamentos espirituais.
Às vezes, pede-me que repita trechos, enquanto faz observações e exegese das mensagens.
Agua, questão de fé
Só paro, já cansado da longa leitura, quando peço a dom Marco que me indique o banheiro. De lá saio direto para os raios de sol daquela primavera romana, formando, em seguida, fila na fonte em que bebo água supostamente pura e mineral. “Temos que acreditar que esta água é a melhor possível, uma questão de fé”, observa-me Hans Bauer,55, escritor, um peregrino alemão de Munique, sedento, naquela tarde primaveril.
O mundo ao derredor parece uma maravilhosa tarde de Pentecostes, como diria João Paulo II. E essa Pentecostes – a reunião de povos de muitas línguas, em Jerusalém, conforme relato de Atos – fala muito em polonês, especialmente por meio de dezenas de milhares de jovens polacos que se espalham pelas esquinas.
São moços e moças, fortes, saudáveis, entre sorridentes e piedosamente circunspectos, carregando bandeiras com as cores branca e vermelha.
A eles juntam-se outros grupos, um deles multirracial, de brasileiro, com enorme bandeira do Brasil. É o único estandarte do grupo. Precisaria de outro?
Rumo aos “souvenirs”
Todos marcham em silêncio em direção a espaços previsíveis naquele mundo que em certos momentos parece tocar os céus: dirigem-se a vários roteiros do endereço monástico. Uns vão direto à loja de souvenirs e à lanchonete.
Outros procuram conhecer o claustro ou aquilo que pode ser visto dele.
Na loja, os preços não são nada ‘caridosos’, e as regras de um bom marketing religioso ditam o comportamento local. É o que concluo quando observo atentamente o diálogo entre o vendedor/caixa e uma peregrina ucraniana. Ela queria porque queria uma publicação sobre a Basílica, em ucraniano, “já que vocês têm uma em russo”, argumentava.
O vendedor, alheio provavelmente à grande tensão gerada pelos invasores russos na Ucrânia, saiu-se com essa:
– Ah, moça, veja o tamanho e a população da Rússia. Compare tudo com o tamanho e a importância da Ucrânia…
O moço foi de uma franqueza dura como aquela dos homens das fronteiras.
A moça não se mostrou chocada. Foi direto a uma bíblia em sua língua ucraniana, que acabou comprando. Não sem antes escolher, com certa sofreguidão, chás supostamente medicinais e bolos que levam a assinatura do mosteiro.
Não me surpreendi com a facilidade com que aquela multidão de peregrinos saia das orações fervorosas para o consumismo sob a desculpa do sagrado.
Afinal, candidatos à santidade, em peregrinação, também pagam tributo ao deus Mamon e às delícias e surpresas que ele pode proporcionar.
(segue na próxima sequência de posts)