domingo, 15 junho, 2025
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Vídeo mostra o recluso Dalton Trevisan em sua intimidade

HOJEPR e Estadão Conteúdo Dalton Trevisan deve a alcunha de “vampiro de Curitiba” ao livro homônimo, publicado por ele em 1965, e especialmente à escolha por uma vida reclusa na capital paranaense. Considerado o maior contista da literatura brasileira contemporânea, o escritor completaria 100 anos no sábado (14) – ele morreu em 9 de dezembro, aos 99 anos.

Em ocasião do centenário, uma série de eventos e iniciativas que celebram seu legado serão realizados entre os meses de junho e agosto. Nesta sexta-feira (13), o Instituto Moreira Salles (IMS) lança um curta-metragem com uma feliz surpresa: há um breve – e raro – registro do escritor trabalhando em frente ao seu computador, gravado pela agente literária e amiga Fabiana Faversani.

A produção explora o minucioso arquivo de Trevisan, doado por escolha dele ao IMS, em 2024. Quem narra o curta é a própria Fabiana, mostrando detalhes do escritório onde ele passou os últimos anos, num apartamento no centro de Curitiba. Ali, o “vampiro” dedicava os dias à reorganização de sua obra.

Além da biblioteca pessoal de Trevisan e volumes publicados por ele, o acervo também conta com fotografias, correspondências, diários e recortes de jornais e revistas. Desde a adolescência, ele catalogava notícias sobre crimes (que no futuro inspirariam suas narrativas) e outros interesses. Mais tarde, passou a guardar resenhas e reportagens sobre sua obra.

 

Fabiana explica no vídeo que o autor planejou a doação ao museu “por ter plena ciência da importância do material estar disponível para pesquisa e provocar uma série de novas discussões sobre a obra”. O arquivo inédito ainda não chegou ao IMS – parte dele foi emprestada para a exposição que acontece na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na Universidade de São Paulo, até agosto.

Rachel Valença, diretora de literatura do IMS, disse ao Estadão que esse tipo de registro, mostrando o acervo na origem, é uma rotina para a equipe. “Nesse caso, o curta também se tornou um documento importante e resolvemos guardá-lo para divulgar no centenário. Para um autor que foi tão discreto e reticente quanto a entrevistas e qualquer tipo de divulgação, ver uma imagem dele, uma fala, ainda que breve, é muito raro”, destaca.

Acervo do Vampiro

O acervo passará por etapas de conservação, catalogação e digitalização. Rachel adianta que a organização minuciosa de Trevisan, mostrada no vídeo, ajudará a equipe a processar o material o quanto antes. “É muito animador ter um acervo tão completo, tão rico em possibilidades de pesquisa. É realmente um tesouro”, define.

Em 2020, o IMS teve acesso à uma pequena parcela do material, quando recebeu do autor as cartas trocadas com o jornalista e escritor mineiro Otto Lara Resende. A instituição agora abriga a correspondência completa entre os dois, já disponível para os pesquisadores.

“É muito interessante. A correspondência começa na década de 1950, quando os dois ainda eram jovens e tinham o desejo de se tornarem escritores. Ambos são muito críticos e rigorosos com o trabalho um do outro – eles até pedem que seja assim”, descreve Rachel. Dalton e Otto trocavam as primeiras versões de seus escritos, e o curitibano sempre recomendava ao amigo a economia de palavras.

No curta-metragem, um livro em cima da mesa, cheio de anotações e rasuras, atesta que, até seus últimos momentos, o autor empenhou uma reedição minuciosa de sua produção. Na carreira longeva, de quase 80 anos dedicados à literatura, Trevisan valorizou a concisão e preferiu os contos curtos. Foi um minimalista. Com narração afiada e poucas palavras, traduzia dramas cotidianos e, quase sempre, mostrava a face dúbia, solitária e violenta do ser humano.

Dalton escreveu e reeditou suas obras até próximo de sua morte, em dezembro de 2024. Reprodução

Mas o que mais chamou atenção da diretora nas correspondências foi o sonho, compartilhado entre Dalton e Otto, de conquistar reconhecimento como literatos, transcendendo a vida em uma cidade pequena. “Principalmente Dalton, por morar longe do Rio de Janeiro e dos centros culturais mais importantes do País. Ele duvidava muito de que viesse a ser lido como um escritor importante, porque se dizia um ‘escritor da província’”, diz Rachel.

Ao contrário das próprias expectativas, se tornou um nome de peso da literatura brasileira e logrou reconhecimento internacional, mesmo sem nunca ter trocado Curitiba. Trevisan viveu isolado em casa por décadas. Tinha um grupo pequeno de amigos, não costumava dar entrevistas, não recebia seus prêmios, e nem frequentava o meio literário. Isso acarretou em episódios nos quais a curiosidade alheia levou ao desrespeito com a privacidade do autor, lembra Fabiana, a agente, no curta.

A perspectiva de acessar documentos tão íntimos de seu acervo, inclusive diários, é animadora. De acordo com Rachel, o escritor não deixou quaisquer restrições quanto à divulgação do material, mas queria conviver com seus pertences até o fim – o contrato de doação ao IMS estabeleceu que só seriam recolhidos depois de sua morte. Além disso, havia uma grande preocupação de que Fabiana acompanhasse tudo; “ele praticamente a nomeou curadora desse acervo”, nota Rachel.

O IMS espera que os trabalhos desenvolvidos a partir do acervo aproximem a obra do público. “Dalton Trevisan foi um contista extraordinário. Foi estigmatizado como um homem inacessível, estranho, que produzia coisas esquisitas. Mas, por trás dessa capa, está apenas um grande escritor, de um lirismo, e de uma dimensão humana espetacular”, analisa a diretora.

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