segunda-feira, 5 maio, 2025
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Leonor Demeterco de Oliveira: Viver é Preciso

Leonor Demeterco de Oliveira
Leonor Demeterco de Oliveira

Ao longo de muitos anos, Leonor Demeterco Correa de Oliveira e eu fomos nos conhecendo, através de amigos comuns. Não foram seguidas as oportunidades de contatos pessoais com essa mulher que “merece um livro”, como se dizia em outros tempos, os de minha infância e mocidade, que foram os mesmos dela.

Nascemos os dois no ano de 1940 – um divisor de águas no calendário, em plena Segunda Guerra Mundial e com todos os marcadores de dias de bênçãos e dias de ira, anos de certezas espirituais irremovíveis e sob uma penca de dogmas que guiavam (ou cauterizavam?) o mundo e influenciavam boa parte da História daqueles dias.

Foram tempos de Vargas, no Brasil. Eram dias também de uma Curitiba provinciana, com as rádios PRB-2 (a Clube) e a Guairacá, sendo o grande ponto de contato com o mundo exterior e fator de unidade paranaense.

Curitiba era então frequentemente citada Brasil afora como sendo um burgo “estranho”, de clima frio e grande número de imigrantes não ibéricos e seus descendentes; imigrantes que, para conquista de um lugar ao sol, por vezes encontravam barreiras junto a certos estamentos do “velho Paraná”, tal como crônicas da cidade nos mostram, assim como a memória de antigas famílias nos revelam.

Leonor encaixava-se nesse perfil: era filha de descendentes de ucranianos, italianos e alemães, pelos dois lados. Seu clã não nasceu em berço esplêndido, pelo contrário: muitos dos ancestrais eram pequenos agricultores, pobres. Alguns, é verdade, como os Fleischfresser, eram urbanos e prósperos no ramo relojoeiro. Ela e os irmãos, sim, nasceram em lar afortunado, o pai tendo assumido os negócios do comércio da família Demeterco, na Praça Tiradentes, onde tudo começou, e foi partida para a formação de um dos maiores conglomerados supermercadistas do país.

A família de Leonor, até por ser multiétnica e não apresentar “sinais” que chamassem a atenção da polícia da ordem política e social, não registram perseguições. Eles fizeram parte, desde o começo, dos amplamente aculturados. Sem embargos de orgulharem-se das raízes.

2 – OBSERVATÓRIO

Leonor Demeterco com os filhos Pedro, Luiz André e Fernando (foto de 2004)
Leonor Demeterco com os filhos Pedro, Luiz André e Fernando (foto de 2004)

Ao reencontrar Leonor neste 2016, para uma ampla entrevista, vou confirmando o que amigos dela, como Eleidi Freire-Maia, Gerson Zafalon Martins e Euclides Scalco, dentre outros, há muitos anos me dizem: trata-se de uma mulher com o pensamento organizado, translúcida até, sapiente na abordagem de dias, pessoas e cenários que revelam também um mundo passé, mas que foi essencial para a construção de valores locais. Um deles, a alma curitibana.

Nos últimos 15 anos comecei a conhecer mais de perto Leonor, escritora e poeta, identidades que ela não aceita.

Acha-se, apenas, uma observadora do mundo e de tudo que nele se encontra. O que lhe dá direito, até, de não ser romântica nem encantada com o universo que a cerca. Mas, por outro lado, também lhe garante um olhar crítico. Sem ressentimentos pelas surpresas que cedo foi tendo na vida, como a morte de Lamartine, do filho Bruno, da neta Bruna… E a sua própria paralisia.

E teria motivos para alimentar visão crítica com ressentimentos, todos e de uma só vez, ela que, a certos momentos de seus textos, apenas uma vez cita sua “Quaresma” persistente. Trata-se de um tempo de penitência sem fim, desde 1967, quando um acidente automobilístico a tornou paraplégica aos 26 anos.

3 – “ERA UMA VEZ”

Praça Tiradentes, Curitiba, na década de 1940
Praça Tiradentes, Curitiba, na década de 1940

O leitor atento irá coletar, em páginas e parágrafos variados do livro “Era uma Vez” os muitos passos de mudanças no universo dessa mulher. Para isso, foi essencial José Lamartine Correa de Oliveira Lyra, ele uma forte liderança da intelligentsia de Curitiba, um civilista reputado. Um católico seguríssimo de sua fé e da certeza de que ela deveria ser parte de grandes mudanças sociais sem violências e sem sangue. É o que testemunham seus contemporâneos e seus escritos deixados.

Os dois não tiveram dificuldades em se encaixar, mais adiante, numa perspectiva que pode ser chamada de “renovadora” da Igreja. Nova forma de ver e agir na sociedade que, naqueles dias, significava também colocar-se contra o regime autoritário dos militares brasileiros. Tudo sob os influxos do Concílio Vaticano II, a janela que João XXIII abriu para o mundo.

4 – VISÃO DE MUNDO

No livro, Leonor deixa claro: o novo olhar que ela adotou libertava-a de pregações baratas, nada a ver com a doutrina, mas pura fantasia de certos colégios religiosos e curas retrógradas, pregações baseadas no temor que impregnavam a catequese daqueles dias.

Uma delas, recorrente, que muito marcou Leonor, contava história da moça que voltou de um baile trazendo a marca de uma mão nas costas. “Era a mão do Diabo, com quem a jovem dançara”, diziam as freiras e catequistas, ameaçando chuvas de enxofre às jovens que ousassem bailar.

Da influência de Lamartine, o mestre do Direito Civil até agora lembrado por seu infindável saber jurídico e timbre filosófico de suas observações (parte haurida com os mestres alemães), Leonor absorveu muito. Disso não há dúvidas, como o despertar para as necessidades do próximo, os desafios de um cristianismo que teria de gerar vida e justiça no seu universo de ação, o empenho de criar autênticas democracias voltadas para o bem comum.

Haveria muito mais para dizer de Leonor e de seu mundo, especialmente da influência fértil e silenciosa com que foi fazendo sua vida transcorrer até agora.

Num de seus textos, essa mulher que não quer apenas ser olhada como alguém “só forte”, muito sensível, há reflexões que definem bem o espírito determinado que nela habita.

Isso ocorre quando confessa não poucos embates com a família – incluindo os filhos – sobre sua visão política. Para ela, o chamado mercado “não opera milagres”. Não entende mudanças sem sacrifícios, a começar por uma reforma agrária “pacífica e sem violência”.

Nesse embate familiar, tal como já escreveu aos irmãos, não acredita, disse, em “neoliberalismo” porque a doutrina “não fala em sacrifício”.

E em matéria de sacrifício, disse, pode dar lições, com a Quaresma diária vivida a partir de sua cadeira de rodas.

(parte do perfil de Leonor Demeterco de Oliveira que estará no volume 8 de meu livro Vozes do Paraná)

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