A Descoberta de Matzeive (cerimônia da religião judaica de inauguração da placa da sepultura) de Jaime Lerner foi realizada no último domingo (27) no Cemitério Santa Cândida, em Curtitiba. A Coluna apresenta a seguir apresentação feita pelo amigo de longa data, Gerson Guelmann, e por Andrea Lerner, filha de Jaime.

Acompanhe a íntegra da fala de Gerson Guelmann, amigo de Lerner:
Quando recebi o pedido da Ilana para falar sobre o Jaime, não sabia se o tom deveria ser triste ou alegre, mas a dúvida acabou logo. Lembrei que ele não gostaria que esse momento virasse “chorraderra”, como ele mesmo dizia. Então pensei que passados 303 dias desde que nos despedimos, este seria um bom momento para celebrar a vida dele.
10 anos nos separavam, e quando você tem 8 e o outro 18, isso faz muita diferença. Assim, a lembrança mais antiga que tenho do Jaime é a de vê-lo jogando futebol no Centro Israelita do Paraná, na década de 1960. Na Curitiba daquela época a comunidade judaica era bem menor e as famílias conviviam mais.
Nossa ligação começou mesmo em 1982, na campanha do Saul Raiz ao governo do Paraná. Depois vieram as campanhas de 1985, 1986 e 1988 e a amizade se estreitou. A partir daí e até 2002 a relação já foi de trabalho e muito próxima, e desde então jamais nos afastamos.
Todos conhecem a história e as marcas do trabalho dele, e nada mais há a ser acrescentado; seu legado e sua memória pertencem ao mundo. Desde que o Jaime se foi tenho falado e escrito sobre os fatos que marcaram os anos em que convivemos, e espero ainda poder contar muito mais, já que todos os dias lembro de alguma coisa, uma história, um ensinamento.
Com o Jaime, que se definia como um especialista em gente, aprendi:
* a identificar e trabalhar com o lado bom das pessoas. Uma vez ele me contou que ouviu de um pedreiro que estava fazendo uma lareira: “Seu Jaime, tem gente para fazer e gente para não fazer”. O Jaime conhecia de longe quem sabia fazer;
* aprendi que não se pode levar a sério quem se leva muito sério;
* aprendi a técnica do cerzido invisível, muito útil para aparar arestas e manter a unidade da equipe;
* aprendi que em alguns casos a gente deve deixar a elegância por conta do alfaiate;
* e, por último, mas não menos importante, aprendi que estamos no mundo para sermos felizes e que por isso algumas vezes é melhor ser feliz do que ter razão.
No Judaísmo existe o princípio de que embora o mundo seja originalmente bom, o Criador deixou espaço para que sua obra seja melhorada por nós. Isso é representado pela expressão TIKUN OLAM.
No depoimento que gravei para a Kehilá após o falecimento dele, terminei dizendo
– “O Jaime fez suas as palavras de Tolstoi e tornou-se universal ao pintar sua aldeia, como nenhum outro o fez. Tendo se tornado um cidadão do mundo e convivido com as maiores celebridades, jamais deixou de ser o ingale de Dona Elza e do Seu Félix, o piá que saiu da Barão para conquistar sua amada Fani e deixar o mundo muito melhor do que encontrou”.
Hoje posso acrescentar que o Jaime, o piá curitibano da rua Barão do Rio Branco praticou o TIKUN OLAM.
Nós judeus quando somos informados do falecimento de alguém, dizemos em hebraico BARUCH DAYAN HAEMET – BENDITO SEJA O VERDADEIRO JUIZ, como forma de aceitação dos desígnios divinos. Depois, sempre que escrevemos o nome da pessoa, acrescentamos as letras ZL, abreviatura das palavras hebraicas que significam ABENÇOADA SEJA SUA MEMÓRIA.
O que viemos fazer aqui hoje, o descerramento da matzeiva, remonta aos tempos de nossos patriarcas e, além de um ato de respeito pelos falecidos, é uma forma se assegurar que eles não serão esquecidos.
JAIME LERNER, ABENÇOADA SEJA TUA MEMÓRIA, VOCÊ JAMAIS SERÁ ESQUECIDO.
GERSON GUELMANN

A seguir, o discurso da filha de Jaime, Andrea Lerner:
Todos sabem que a escritora da família é a Ilana, que desde a morte da minha mãe, é a âncora de nossa família, sempre cuidando do pai de maneira incomensurável. Para isso teve ajuda de três irmãs maravilhosas, Rosi, Nadi e Leda que também cuidaram do meu pai com muito carinho.
Ela não está falando hoje porque, como dizia meu pai: a Ilana chora só de abrir a lista Telefônica e encontrar o nome de um conhecido.
A dois dias atrás, ao chegar em Curitiba, com Sebsatiaan e Sophie, pegamos um uber. Já na Avenida das Torres, veio aquela saudade do Mauro que sempre nos buscava, isso já anunciava a estranheza do caminho. Chegando em Curitiba, ao Invés de seguirmos sentido Cabral, viramos no sentido Centro. De repente, senti, lembrei e entendi, que não estava indo para a Rua Bom Jesus, que não estava indo visitar meu pai. Angustiada, comentei com Bas e Sophie, e ela me disse: “mas mãe, pelo menos o vovô está em toda parte aqui em Curitiba”.
Este tem sido sempre nosso maior consolo, a facilidade de acessar o seu legado.
Mas hoje quero falar menos do Jaime público e celebrar o Jaime privado, se é que esta separação seja possível.
Jaime, filho da vó Elsa, e do vô Feliz, irmão do Júlio, do Etche, da Clarita e da Léa. Casado com Fani, pai da Ilana e da Andrea, sogro do Claudio e do Sebastiaan, e avô do Ben, da Liana, do Tobias e da Sophie.
Meu relato é pessoal, não histórico. Tem certo grau de fantasia, a que meu pai, imagino, não se oporia.
Da minha vó meu pai herdou os olhos vivos, azuis quase transparente. Mas do que esse azul da minha vó, ele herdou “o olhar bom”. Digo olhar bom, porque era maravilhoso olhar o mundo através dos olhos deles, olhos que escolhiam focar no belo, nas qualidades, nas possibilidades e potencialidade. Um olhar cheio de humanidade e positivismo. Não tinha dia de chuva com eles. A frase preferida da minha avó era: “não posso me queixar”. Foi o que proporcionou ao meu pai ter, como ele dizia: “uma gaveta de desaforos não respondidas em casa”.
Do tio Júlio, irmão da minha vó Elza, ele absorveu uma curiosidade profunda. Meu tio estava sempre perguntando, “vous thats, vous this?” Eu era pequena quando ele morreu, mas lembro dos seus olhos curiosos.

Já do vô Felix, veio a compasso moral, a integridade, a compreensão do que era o certo e o errado. Mais tarde, para engrossar este caldo, vieram minha mãe, Fani, a tia Francete e tio Nireu, que assim como meu avô, direcionavam meu pai na sua jornada.
Da convivência com minha mãe, veio sua melhor frase: “a intuição é a certeza do inconsciente.” Não conheci ninguém mais intuitiva que ela. Minha mãe, apesar de sua fragilidade, era sem dúvida a capitã do navio da Bom Jesus. Meu pai uma vez me disse: “sem tua mãe eu provavelmente perderia o rumo”.
Dos irmãos, e aqui, falo sem nenhuma prova, apenas intuição, veio o aconchego de pertencer. Tenho certeza que brigas foram muitas, como em qualquer família, mas em anos de vida pública estes irmãos se mostraram, amorosos, leais, desprovidos de ganância, e tão generosos com seu irmão mais exibido, meu pai. Não é fácil ser generoso com um irmão exibido, mas eles sempre foram.
Da sua infância na Rua Barão, meu pai tem uma “versão felliniana”. Um circo ao lado de sua casa, aonde ele ia diariamente. Nem ouso perguntar aos meus tios sobre a veracidade desta história, não importa, na memória do meu pai, está desenhado este circo. Para o menino tímido e asmático, o circo era um tipo de lugar fantástico. E não era apenas o circo, nesta rua mágica, tinha bondinho, estação de rádio, a rodo ferrovia, praça, lojas e amigos. Quem escuta imagina que poderia ser Paris, NY ou Berlin, mas era a rua Barão.
E assim foi, meu pai pertenceu a sua família, a sua rua, a sua comunidade judaica, a sua cidade de Curitiba e eventualmente ao mundo.
Ele dizia, e esta não acho que seja sua frase, que a vida era como um estilingue, é preciso entender e pertencer a um passado, para se projetar a um futuro. E ele diariamente se lançava ao futuro.
Hoje adulta, só começo a entender as marcas e influências que tenho de meu pai, e que divido com minha irmã. A começar pela nossa casa muito engraçada, aos brinquedos inusitados que ele nos trazia de viagem, ao marinheiro chamado Bintilim personagem inventado pelo meu pai, para nos fazer dormir.
Sábado era dia de Pasquale, com direito a minipastel e catavento, mas sem pedalinho. Nem tudo era perfeito. Feirinha aos domingos com parada no chorinho e visita a loja de brinquedos Gepeto. Foi ele quem me levou a uma matinê do filme Cantando na Chuva, e começou ali meu encanto com a dança. Ele que me consolou quando voltei chorosa da escola, segurando meu livro de criatividade, onde escrevi uma história que estava recheada de correções em caneta vermelha e com nota regular. Me pai leu a história e disse “está linda a história, tua professora é que não entendeu nada”.
Ultimamente sua grande felicidade eram os netos. Seu grande parceiro Ben, seu neto meio filosofo Tobias, sua neta romântica e amorosa Liana, e sua neta mais jovem, companheira de desenho e poemas, Sophie. Como ele estava encantado com todos vocês.
Uma das últimas vezes que filmei meu pai, estávamos vendo o pôr do sol na janela da casa, ele todo dourado, batendo palmas e cantando: “ Ó Sol, tu que és o rei dos astros, ilumina mares e montanhas…” Com a câmera ainda focando o sol digo: “pai estou tão feliz que você está bem”, ao que ele respondeu: “e eu estou tão feliz que você está feliz”.
Numa de suas melhores poesias ele diz, “felicidade é ser adivinhado”. Hoje aqui, com tantos amigos, colaboradores, família, pessoas que o adivinhavam diariamente, vocês o fizeram um homem muito feliz.
Aqui jaz um homem muito feliz.
ANDREA LERNER