segunda-feira, 20 janeiro, 2025
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Aos 98, vida literária de Dalton Trevisan está por ser ‘reescrita’

Por Marcus Gomes – O frio e a chuva típicos de Curitiba comemoram nesta-quarta (14) o aniversário de 98 anos do maior contista brasileiro, talvez do mundo, o que ele não admitiria porque não é dado a hipérboles literárias. O nome é Dalton Trevisan. Dalton Jerson Trevisan. Nascido em 1925 nesta capital. Prazer.

Em 2011, Dalton publicou o último livro de contos inéditos (“O Anão e a Ninfeta”), com o estilo que sempre o marcou de textos curtos, incisivos e nada recatados. Dalton foi censurado nas escolas, bibliotecas e durante o regime militar – e, ao que sabe, não pediu nenhuma indenização ao Estado (tomou, papudo?).

Na década de 80 ganhou o concurso literário da revista “Status”, com o conto “Mister Curitiba”. Ganhou, mas não levou. A ditadura lhe cassou o posto e o prêmio. Não seria a última vez que Dalton, um recluso notório, comparável ao J.D. Salinger de “O Apanhador no Campo de Centeio”, porém mais prolífico, enfrentaria a tesoura e a inquisição. Ao fim, ficam os quirodáctilos, vão-se os coronéis.

“Ninguém escreve nada decente depois dos 80”

Em encontros com amigos, na era pré-pandemia, entre eles o livreiro Aramis Chain, anunciou sua aposentadoria, afirmando que “depois dos 80, ninguém escreve nada decente”. Pois ele publicou aos 86 e não dá sinais de que vá parar. Talvez não tenha escrito novos contos na última década, nunca se sabe. Seus 700 textos breves, contudo, continuam sendo reescritos a cada edição. Compulsivamente.

Prova disso é a “Antologia Pessoal”, lançado pela Record, em abril, que traz 94 contos selecionados e, indubitavelmente, reescritos pelo próprio autor. A história de Dalton, o curitibano de rotina inabalável, está igualmente relacionada com essa tarefa. Do “Vampiro de Curitiba” – epíteto que parece uma marca desgastada – sabe-se pouco. Há retalhos biográficos, sem precisão, que vazaram por indiscrição ou maledicência real. O que se sabe de Dalton, portanto, carece de reescrita.

Apartamento em condomínio da Dr. Muricy

Em 2021, aos 95 anos, já privado de suas caminhadas peripatéticas e sob a atenção de uma cuidadora, Dalton mudou-se para um condomínio de apartamentos, na Rua Dr. Muricy, na região central da capital paranaense. A causa foi um ladrão, preso em flagrante. O endereço preciso do contista é guardado a sete chaves por seus amigos próximos. Dalton mantém um muro intransponível em torno de si e, se sai à rua, faz questão de fugir daqueles que tentam fotografá-lo ou abordá-lo. Se alguém quer um livro autografado, muito bem. Que o deixe na Livraria Chain, com nome escrito em papelinho.

Aqueles que, de forma sub-reptícia, quiseram aproximar-se do escritor decantando amizade, se deram mal. Ou foram eviscerados impiedosamente em seus contos ou ganharam a pecha de baratas leprosas, sem mais a acrescentar.

Hiena Papuda

Que o diga repórter da mesma revista “Status” que viria premiá-lo em concurso de contos. Com a missão de aproximar-se de Dalton, ele observou o escritor por alguns dias e descobriu a banca de jornais onde ele comprava livros de bolso e outras publicações. Foi matreiro, puxou conversa, e o escritor prontamente lhe indicou um dos livros de sua preferência: uma edição, em papel jornal, dos “Contos de Tchekhov”. O colóquio prossegui e foi gravado pelo repórter, onde depois seria reproduzido na revista. Dalton reclamou na seção de cartas dos leitores. Não culpou o repórter, mas o editor, e a ele dirigiu alguns palavrões elegantes e refinados, típicos de sua verve.

Desavenças que se tornaram contos são mais conhecidas. Dalton espetava espinhos nas pontas dos dedos (os quirodáctilos) para assim escrevê-los no tom apropriado: o do ódio. “Hiena Papuda” e “Amintas 749” são só exemplos.

“Se Capitu não traiu, meu nome é José de Alencar”

Há mais, muito mais. O contraponto são suas homenagens a amigos de longa data. Otto Lara Resende, por exemplo. A correspondência entre eles soma 600 cartas e foi doada ao Instituto Moreira Salles. Estão na lista, ainda, Rubem Braga e Vinicius de Moraes, cujos versos em que afirmava “me perdoem as feias, mas beleza é fundamental”, foram estrondosamente refutados por Dalton. Ele sempre amou todas: as polaquinhas, as gordas do Tiki Bar, as de cinta-liga, broinhas de fubá mimoso.

Se o escritor é maldito fruto entre as mulheres, trata-se de caso pontual. Dalton é inflexível quando discute o adultério de Capitu, personagem do livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Para ele não há dúvida: “Se Capitu não traiu Bentinho, meu nome é José de Alencar”. E ponto. Assim é Dalton. Aos 98, aos 100 e aos anos que virão.

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