domingo, 6 julho, 2025
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Série ‘O Caso Evandro’, de Guaratuba, chegou ao fim com fitas inéditas

Beatriz Abbage

Último episódio do documentário foi disponibilizado no Globoplay (Globo)

 

Produção original do Globoplay, a série documental “O Caso Evandro” tem mobilizado as redes sociais por partir do desaparecimento e assassinato macabro de um menino no Paraná, em 1992, para fazer um retrato cru das mazelas do Brasil. A história real traz elementos como corrupção, preconceito religioso, violência policial, voyeurismo, tortura, prisões injustas e até mesmo fake news.

Baseada no podcast “Projeto Humanos — O Caso Evandro” (2018), do professor e escritor Ivan Mizanzuk, a série teve seu sétimo e último episódio disponibilizado no Globoplay na madrugada desta quinta-feira. E traz desdobramentos chocantes, desconhecidos até por quem acompanhou toda a longa e densa trama narrada no podcast de Mizanzuk.

Ainda haverá um oitavo episódio, extra, que resumirá o “O Caso Leandro” — a história de um outro desaparecimento, de Leandro Bossi, de oito anos, na mesma cidade (Guaratuba, no Paraná), dois meses antes do sumiço de Evandro. Como Mizanzuk adiantou no Twitter ao divulgar o fim da série, não terá segunda temporada.

VERDADEIRO ASSASSINO IMPUNE

É importante avisar aos mais ávidos que, não, a série “O Caso Evandro” não termina revelando quem matou o menino Evandro Ramos Caetano, cujo corpo foi encontrado desfigurado, sem vísceras e órgãos há quase 30 anos, em Guaratuba. Ela, porém, faz uma indicação clara do contrário: é muito possível que o verdadeiro assassino tenha passado impune e, caso vivo, ainda esteja à solta.

Isso porque o capítulo final apresenta gravações inéditas, entregues recentemente a Mizanzuk por uma fonte anônima. As fitas em questão são citadas diversas vezes ao longo do seriado, até mesmo pelo primo de Evandro, Diogenes Caetano dos Santos Filho, como se fossem provas de que o pai de santo Osvaldo Marcineiro e seus supostos comparsas Vicente de Paula e Davi dos Santos Soares sequestraram e mataram Leandro Bossi dois meses antes do sumiço de Evandro — o que confirmaria a teoria de uma “seita de magia negra” e os incriminaria por ambas as mortes.

GRAVAÇÕES INÉDITAS

Tais fitas chegaram a ser citadas durante as investigações da polícia paranaense, mas nunca foram oficialmente apresentadas como provas em nenhum dos tantos julgamentos e processos que envolveram o caso midiático. O motivo disso é sugerido pela série “O Caso Evandro” em seu encerramento.

Airton Bardelli dos Santos

As gravações, na verdade, são um tiro no pé da promotoria na narrativa que busca incriminar não só Marcineiro, De Paula e Davi, como também Beatriz e Celina Abagge (filha e mulher do então prefeito de Guaratuba), Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli dos Santos, que teriam idealizado ou contribuído com o suposto “ritual de magia negra” que sacrificou Evandro. Vale lembrar que os sete chegaram a ser presos e, tirando Cristofolini e Bardelli, todos foram efetivamente condenados pela Justiça do Paraná.

EVIDÊNCIAS DE TORTURA

As fitas trazem um conteúdo chocante. São registros gravados de sessões de tortura praticadas pelo poder público contra ao menos Marcineiro, De Paula, Davi, Beatriz e Bardelli, com o intuito de costurar uma confissão para solucionar o caso. Em certo momento, o interrogador chega a falar “não vai ter jeito, vamos ter que continuar a sessão, ela não quer colaborar”.

“Ela” é Beatriz Abagge, que também pode ser ouvida nas fitas falando em voz baixa “isso não é verdade, eu estou inventando isso” e pedindo socorro. O conteúdo gravado também traz Marcineiro ofegante e com voz de desespero contando uma suposta confissão inicial completamente diferente da que foi usada mais à frente pela Justiça e registrada em vídeo. O interrogador chega até a confundir o menino cuja morte Davi deve confessar. Diversas vezes os acusados pedem piedade por “estarem cooperando”.

MARKOWICZ CEDE ÀS FITAS

As fitas são apresentadas em primeira mão por um dos diretores de “O Caso Evandro”, Aly Muritiba, a Beatriz, Celina, Bardelli e Davi. Eles citam que a tortura da Polícia Militar passava por choques elétricos, afogamentos e outras agressões “que não deixavam marcas”.

Advogado Figueiredo Basto

Também ouvem as gravações à frente da câmera o promotor do Ministério Público do Paraná Paulo Sérgio Markowicz de Lima (responsável pela acusação dos então suspeitos) e Antonio Augusto Figueiredo Basto, o advogado de defesa. Markowicz , que sempre se mostrou relutante às alegações de tortura, vai cedendo conforme as fitas são apresentadas e, no final, não consegue esconder o constrangimento e admite uma “tristeza profunda”. “Sessão de quê? De cinema que não é”, comenta, indignado, ao ouvir a fita do interrogatório de Beatriz Abagge.

Promotor Paulo Sergio Markowicz

Ele reclama nunca ter tido acesso às gravações durante o julgamento. Já Basto transita entre o alívio de finalmente ter sua versão de defesa comprovada, a emoção causada pelos fortes relatos e a indignação pela falha crassa provocada pelo poder judiciário. Tanto o advogado quanto Ivan Mizanzuk pedem que a Justiça do Paraná se retratem com os seis acusados ainda vivos (Vicente de Paula morreu na prisão) e os indenize.

EU ACREDITO NELES

Acompanhei razoavelmente o chamado lamentável caso das “Bruxas de Guaratuba”, uma farsa política montada para incriminar, é o que tudo indica, opositores do governador da época. Restaram homens e mulheres machucados no corpo e no espírito para o resto da vida, como Beatriz e Celina Abbage, mãe e filha. Eram esposa e filha do prefeito de Guaratuba, Aldo Abbage, A vida me ensinou a ser cético diante das primeiras informações decorrentes de apurações policiais.

E assim fui no caso de Guaratuba, que desde o começo os insuspeitos (e ótimos) jornalistas Vânia Mara Welt e Gladimir Nascimento apontaram como eivado de falhas na apuração policial. Eles sempre acreditaram – e escreveram sobre a inocência das Abbage.

Agora soma-se outro testemunhos insuspeito, o do então delegado José Maria Correa de Araujo, hoje aposentado, um dos notáveis da polícia Civil do Paraná, dizendo a mesma coisa, como revela o documentário da Globo. A capacidade de investigação de José Maria sempre foi respeitada. Na imprensa, nos anos 1980, ele era chamado de “Sérpico do Paraná”, em alusão ao policial de série de televisão.

Tenho de confessar, no entanto, que o testemunho que mais me impressionou, em favor das duas senhoras, foi o de frei Miguel de Botacin, o “santo” da Vila Nossa Senhora da Luz, que sempre fora conhecido por sua santidade pessoal e suas marcas de parapsicólogo. E ao testemunho favorável às Abbage dado pelo capuchinho, acrescento que o então arcebispo de Curitiba, dom Pedro Fedelto, também se manifestou a favor delas integralmente.

Aníbal Khury

MAIS FORTE QUE ANÍBAL

Quem conhece a história do Paraná do século 20 não deixará de estranhar o seguinte: Aníbal Khoury, que por 50 anos foi “ o poder no Paraná” – senhor absoluto da vida política do estado, embora primo e amigo dos Abbage, não conseguiu evitar as torturas e o “veredicto” contra as mulheres e os demais incriminados. Daí se depreeende o enorme poder que estava por trás dos policiais da PMEP (coronel Copetti e outros) que comandaram a grande farsa e extraíram a “confissão”. Torturas inomináveis. Por último, mas não menos importante, acrescento para avaliação do leitor:

Tenente coronel Valldir Copetti Neves

COPETTI E E O LEGISTA

Valdir Copetti Neves, capitão da P2 da PM-PR, que comandou a operação que prendeu e torturou os sete acusados do Caso Evandro, em 1992, encontrou seu fim em 2018, quando foi executado a tiros em Ponta Grossa. Em 2009, já como tenente coronel, foi condenado a 18 anos de reclusão e à perda do cargo pelos crimes de tráfico internacional de armas e formação de quadrilha, e chegou a ser preso.

Neves tinha sido denunciado pelo Ministério Público Federal do Paraná por suspeita de formar milícias armadas para proteger fazendeiros contra invasões de terras. Lembro também que, em 2018, o médico legista Francisco Moraes Silva (que inclusive testemunhou contra os sete acusados do Caso Evandro, no júri popular) se tornou réu na denúncia contra o médico Raphael Suss Marques, acusado de matar a fisiculturista Renata Muggiati, em setembro de 2015. De acordo com o MPPR, Moraes Silva e seu colega do IML, Angelo Colman, se tornaram réus por um laudo de exame de necropsia com conclusão falsa quanto à causa da morte de Renata.

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