quarta-feira, 10 setembro, 2025
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Memória Urbana: Boemia, aqui repousam saudades…

Por Raul Urban* – No fim do mês de agosto, as diversas gerações curitibanas apreciadores da boemia, se surpreenderam ao serem informados do encerramento em definitivo de dois tradicionalíssimos endereços que por décadas reuniram os clãs adeptos de bons aperitivos, de uma boa cerveja e de tira-gostos de dar água na boca.

A Rua Saldanha Marinho, nas proximidades do encontro com a Rua Visconde de Nacar, perdia o Bar Kapelle, que existiu por 52 anos e cuja trajetória iniciou na Rua Barão do Serro Azul, perto do cruzamento com a Rua 13 de Maio, ainda no século passado. O tempo todo, sob o comando de Mara, musa de tantas gerações. Não faltam lembranças, aqui revividas e buscadas em blogs e citações do passado por este colaborador, que também marcoAbrão a longamente presença naquele endereço:

No dia 24 de novembro de 2011, Zé Beto, em seu blog, dizia:

O bar Kapelle, da Mara, mais vivo do que nunca

O Kapelle, da fantástica Mara, é um dos mais tradicioanais bares de Curitiba. Tem 37 anos de vida e zilhões de histórias. O bar ficou um tempinho fechado para se adaptar à nova ordem sobre música ao vivo. Está liberadíssimo e ali se ouve o melhor da MPB, entre outras coisas. O Kapelle fica na rua Saldanha Marinho, 670 (entre a Alameda Cabral e a Visconde de Nacar). Entrar ali é como se estivesse participando da história da boemia curitibana. Um dedo de prosa da dona, musa de várias gerações de artistas, jornalistas, escritores, vale mais que o conteúdo de toda uma enciclopédia. Frequentar o Kapelle, um dos últimos sobreviventes diante da maré de cópias plastificadas de botecos que infestam Curitiba, é ajudar a manter a história que realmente vale a pena nesta cidade. O bar Kapelle fechou definitivamente sua porta no dia 22 de agosto. Ainda no fim dos anos 1990, a suave música ao vivo ofertada era a da jornalista Beatriz Hyuda de Luna Pedrosa – a Bia, acompanhando seu violão, ela, também, uma amante das boêmias noites criativas com os colegas de profissão. Bia morreu em 2008.

No dia 30 de agosto de 2025, ao fechar das portas uma semana antes, no dia 23, em caráter definitivo, do mesmo endereço que marcou gerações, foi assim narrado por um outro blog – o Centro de Curitiba, transcrito abaixo:

Adeus, Kapelle

 

Toda sexta era santa no Kapelle – e os sábados também. Mas acabou. O mais boêmio dos bares de toda a história de Curitiba jaz desde o último dia 22, quando apenas dois gatos pingados presenciaram a última apresentação no mítico espaço. Hoje, um silêncio de velório toma conta do número 670 da Saldanha Marinho.

Foram 51 anos, desde julho de 1974, prestando bons serviços à noite curitibana. Meio século e zilhões de histórias: ali (primeiro na Barão do Serro Azul e depois na Saldanha) frequentaram jornalistas, políticos, músicos, artistas, escritores, poetas, acadêmicos e pessoas públicas como Manoel Carlos Karam, Paulo Leminski, Dante Mendonça,  Francisco ‘Pancho’ Camargo (nove entre dez colunas dele publicadas nos anos 80 no Correio de Notícias mencionam o Kapelle, grande fonte de informação e inspiração), Zé Beto, Orlando Kissner, Maurício Fruet, Ivo Rodrigues, visitantes ilustres como Jaguar, Sepúlveda Pertence, Alceu Valença. Passar por aquela porta era como mergulhar de cabeça na memória da boemia da cidade.

E é impossível descolar essa importância do bar à figura da Mara, a criadora, musa de várias gerações de intelectuais e vagabundos. Entre gargalhadas, palavrões e muitos mimos aos frequentadores, Siumara Rocha encarou o preconceito de ser dona de bar nos anos 70/80 e comandou a casa (onde chegou também a morar, nos fundos) até sua morte, em 4 de novembro de 2020. Depois, o bar seguiu sob a administração da Silvana. Se a Mara era a cara do Kapelle, a coroa era o Mauro Marinelli que encantava a plateia com seus acordes e uma sempre fina seleção da melhor música popular brasileira, desde 2008 até a última noite de vida do bar, sábado passado (coincidentemente, no mesmo dia em que, a poucas quadras de distância, o Ligeirinho também dava o seu adeus).

Devagar, o “Ligeirinho” perde sua referência

Mas veio o segundo baque, anunciando o fechamento definitivo das portas do Bar do Ligeirinho, com 76 anos de história, uma instituição nascida pelas mãos, igualmente ainda no século 20, de um ex-jogador do Coritiba, Ronald Abrão, o popular “Ligeirinho”. Também vem de longe o tempo em que Abrão, que iniciou sua carreira de garçom do Bar Stuart – endereço centenário, fechado em 2023, e que jura retornar das cinzas ainda neste ano -, lançou a ideia de rifas, com sorteio, primeiro, de eletrodomésticos, depois, de alimentos, garantindo a fidelidade da freguesia. Abrão morreu em 2014. Curiosamente, a casa passou a ser dirigida pela sua mulher, também chamada Mara – como no Kapelle-, que vendeu o endereço a terceiros, poucos anos depois.

Abrão alçou voos próprios ao abrir sua própria casa, em 1949, em endereços diversos no centro da cidade, até ocupar o pavimento térreo, na esquina das ruas Carlos de Carvalho e Voluntários da Pátria. No variado cardápio de décadas, em épocas em que o ambientalismo ainda engatinhava, lá estavam exóticas porções de jacaré, avestruz, testículos de touro, coelho e javali, além da sopa Leão Veloso, robalos, caranguejos e carne de onça. Num passado mais distante ali funcionou o antológico e saudoso Bar do Ivo, numa época em que mulher não entrava desacompanhada; e, depois, uma filial da também finada farmácia do grupo Minerva.

Em poucas palavras: os boêmios estão cada vez mais órfãos.

*Raul Urban é jornalista, escritor, memorialista, pesquisador da memória histórica e ligado à área do transporte multimodal integrado e colaborador do Mural do Paraná.

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