sábado, 20 setembro, 2025
HomeOpinião de Valor"Samba do crioulo doido", modismos e mudanças

“Samba do crioulo doido”, modismos e mudanças

Por Eloi Zanetti – O jornalista Sérgio Porto, cujo pseudônimo era Stanislaw Ponte Preta, foi um mordaz analista do comportamento brasileiro. Em 1968, para ironizar a obrigatoriedade imposta às escolas de samba, de colocar nos seus sambas-enredo fatos da história do nosso país, escreveu para o Teatro de Revista – tipo de espetáculo teatral e show ao mesmo tempo, muito popular na época – “O samba do crioulo doido”. A letra retrata a mistura de personagens da nossa história, casando a princesa Leopoldina com Tiradentes, misturando JK com Dom Pedro II e fazendo Anchieta proclamar a escravidão. Uma verdadeira miscelânea. Desde então, quando queremos dizer que alguma coisa é uma mistura sem pé nem cabeça, costuma-se falar: “Isto aqui está um verdadeiro samba do crioulo doido.”

Misturar coisas sem pé nem cabeça é especialidade do nosso povo. Combinamos de forma aleatória tudo aquilo que nos vier às mãos e à cabeça, sem nenhum constrangimento. O que para um europeu ou japonês parece impossível de se juntar, nós juntamos. Misturamos músicas, comidas, cores, roupas, estilos de construção, raças e até crenças religiosas; é só observar os programas de TV aos sábados de manhã.

Para desespero de chefes de cozinha italianos, depois de inventarmos centenas de tipos de pizzas, criamos o grande sucesso do natal – o chocotone – um panetone achocolatado.

Mexemos até nas sagradas receitas do sushi e do sashimi, apresentando variações com manga, goiabada cascão e, pasmem, carambola. No Brasil, a mesa de um restaurante popular só fica completa se estiver farta. Isto quer dizer composta por misturas tipo feijoada, todos os tipos de carnes, diversos de macarrão, alguma comida japonesa, chinesa e mineira. Para completar, diversos queijos, sobremesas e o que aparecer de novidade. Cozinheiro que é cozinheiro inventa. Haja visto o grande sucesso do nhoque frito, por aqui.

Sem pé nem cabeça

Por outro lado, na hora de mostrar estilo, apresentar um modelo de estabelecimento, principalmente de restaurante com unicidade de concepção, derrapamos feio. O espírito do “samba do crioulo doido” baixa nos proprietários e decoradores. Nas classes populares, onde a estética predominante já é a da mistura, podemos considerá-lo interessante, mas em ambiente que quer ser considerado de alto padrão, isso não é possível.

Certos restaurantes são verdadeiras misturas de estilos e tendências. O proprietário, querendo fazer bonito, pega um pouco do que viu em suas viagens pelo mundo e mistura tudo. Há tempos fui, a convite de um amigo, visitar uma nova churrascaria. A especialidade da casa é carne uruguaia – boa, por sinal. A decoração, uma afronta ao bom senso. Ele havia colocado, em um só ambiente, detalhes uruguaios, gauchescos, italianos, mediterrâneos e caribenhos.

Ao lado de ponchos, estribos e caras de boi, ele colocou toalhas xadrezes, típicas de restaurante italiano, em verde e vermelho, peças decorativas provençais com cores puxando para o anil e o vermelho forte, e elementos jamaicanos em tons mais vibrantes ainda. Confessei meu desapontamento ao amigo: uma casa com uma comida tão boa, perder-se na composição dos temas do cenário. Tempos depois ele me informou de que a casa havia fechado. Também pudera, ninguém se sentia bem naquele lugar.

Outro ambiente que me doeu ver ser modificado para seguir modismos absurdos, foi uma velha confeitaria que durante anos fez muito sucesso no centro da cidade – uma casa antiga que manteve sua dignidade por décadas e mudou-se para um bairro. O filho do dono, querendo fazer bonito, contratou um arquiteto aprendiz que em vez de seguir o estilo que todas as confeitarias devem oferecer – ambiente calmo e confortável para nos permitir saborear um chá e algumas torradas ou doces no meio do expediente – criou um cenário estéril e frio, fazendo tudo em granito e aço escovado.

O exagero chegou até às mesas. É comprar um doce no balcão e sair correndo. A casa parece uma geladeira. Podemos, sim, dar todos os descontos possíveis à nossa estética verborrágica, ao Odorico Paraguaçu que existe em todos nós, mas certas coisas não permitem descontos. Em alguns lugares, bom gosto nunca é demais.

eloizanetti@gmail.com

Expressão racista

Esclarecimento: Segundo a Organização da Sociedade Civil (OSC) Liga Solidária, “Samba do Crioulo Doido” é o nome de uma música dos anos 1960 que satirizava a obrigatoriedade imposta às escolas de samba durante o período da ditadura de retratarem nos seus sambas de enredo somente fatos históricos. Apesar do contexto histórico, a expressão é usada para se referir a situações confusas e bagunçadas, reafirmando a discriminação aos negros. Portanto, o termo pode e deve ser trocado por palavras como “bagunça” ou “confusão”.

Leia Também

Leia Também