“Muito popular em Curitiba dos anos 1970, Gilda marcou época. Tipo folclórico de rua, dizia-se travesti. Quem não quisesse levar um beijo seu apressava-se em lhe dar um trocado. Todos fugiam dos seus gracejos na Boca Maldita”. Com essa descrição, o diretor Yanko Del Pino descreve a personagem-tema de seu documentário “Beijo na Boca Maldita”, lançado em 2009, que pode ser visto no link abaixo. Se estivesse viva, Gilda faria 69 anos neste último sete de setembro: https://vimeo.com/8075271
SISUDEZ QUEBRADA
“A Gilda foi a primeira que quebrou aquela sisudez do povo curitibano”, afirma o advogado José Cadilhe de Oliveira (in memoriam, o carnavalesco por excelência), em uma das falas do documentário, que traz ainda depoimentos de Ali Chaim, Claudio Ribeiro, Dante Mendonça e Carlos Fernando Mazza sobre Rubens Aparecido Rinque, a Gilda, travesti curitibana que se tornou lenda da cidade.
As fotografias do documentário, vastas, vêm dos acervos de Kareen Van Der Brooke, Pablito Pereira, Luiz Francisco Stinghen, Haraton Maravalhas, Portos Casela e Alberto Melo Viana, entre outros.
Querem melhor time de reportagem fotográficas do que esse?
PRAÇA DE BOLSO
Lançado no final de 2016, ainda no governo Fruet, um projeto de autoria do então vereador Goura (PDT) pedia a implantação de uma Praça de Bolso Gilda, no pequeno terreno na esquina da Rua Cruz Machado com a Visconde de Nacar.
A ideia de construção da praça prevê a melhoria da travessia de pedestres na Cruz Machado com obras de acessibilidade, dando um novo sentido ao espaço público e priorizar a rua como espaço de encontro.
QUESTÕES SOCIAIS
O grupo que encabeçou o projeto explica que, assim como na Praça do Ciclista, existe o desejo de dar visibilidade a questões sociais.
“Queremos fazer uma homenagem a Gilda, personagem histórica do centro da cidade. Uma travesti que foi assassinada em 1983. Esta será uma forma de homenageá-la e explicitar a necessidade de respeito e tolerância com a diversidade”, apontou a transexual Maite Schneider, em entrevista a um jornal de Curitiba, em 2016.
Terreno de propriedade da prefeitura, a ideia não foi adiante na administração de Rafael Valdomiro. Em junho do ano passado, o deputado Goura postou uma foto do local, sem uso, abandonado pelo poder público, e com lixo acumulado. “A possível Praça de Bolso da Gilda sem atenção do poder público! Tem pesquisa, tem projeto e tem previsão orçamentária! O que falta, prefeito?”, perguntou.
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GILDA, PLENITUDE DA EXPRESSÃO POPULAR
Só gente muito perversa pode ter matado Gilda, ser humano raro mesmo, a despeito de sua loucura “lúcida em intervalos”.
Foi verdadeira relíquia curitibana.
O exercício do travestismo não era dominante nela. Na real, não indicava buscar vida sexual.
Conseguiu colocar, isso sim, a irreverência e holofotes sobre o ensimesmado curitibano de outros tempos, de homens que queriam tudo, menos eventuais certos interesses menos ortodoxos.
PEDIA VEZ
Gilda até ameaçava agredir a quem não atendia a seus petitórios. Também queria opinar em todas as rodas por onde passava e era acolhida com temor e tremor por cavalheiros de todos os naipes.
Sem dar-se conta de seu vanguardismo, claro, foi quebrando um certo gelo da Curitiba zero grau.
MARIA DO CAVAQUINHO
Muito antes de Gilda, quando criança, anos 1950, conheci e tive grande ternura por Maria do Cavaquinho, que merecia ter sido estudada pela academia.
Duvido que alguém tivesse melhor material à mão no mundo da antropologia, do que essa anã, mendiga, eternamente acompanhada de algum instrumento que sugeria ser cavaquinho. Seus chistes poderiam por vezes beirar o filosófico.
Ela pertencia ao patrimônio espiritual/imaterial de Curitiba. Morou na Lapa, e lá morreu, abrigado no Asilo São José, das religiosas de Chamberry (donas do antigo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, o Cajuru).
TODOS JUNTOS
Num certo tempo, acho que a cidade viu juntos, no mesmo espaço, Esmaga, Gilda e Maria do Cavaquinho deambulando pela Boca Maldita e outros pontos da então “aldeia sinistra”, que Curitiba era chamada pelo ator José Baraúna de Araujo.
O TRIO
Todos os três foram perdidos pelos senhores e senhoras da academia.
Eles não se interessaram por esses seres tão reais e únicos na capacidade de mexer conosco.
Coube a jornalistas como Dante Mendonça, Karen Van Der Brooke, Haraton Maravalhas (in memoriam), o Alberto Mello Mello recompor parte da memória da Curitiba urbana. São os meteur-em-scène do documentário que ora nos chama atenção.
Não esquecendo do, é claro, olhar oportuníssimo de Goura, hoje deputado, ex-vereador.
Gilda, Esmaga e Maria do Cavaquinho mexem ainda hoje com nossa acomodação de cidade que prefere quase que só vislumbrar parceiros da inteligência artificial e assemelhados.
(AMGH)