
Por Dalton Borba*
A grande dúvida que paira sobre a cabeça de todo brasileiro, neste momento, diz com a constitucionalidade do decreto presidencial (21/04/2022) que concede benefício a réu condenado (com decisão ainda não passada em julgado) extinguindo a pena que lhe foi atribuída.
Num primeiro juízo, formal e objetivo, nada de errado com o ato do chefe do Executivo; a CF/88 lhe assegura, segundo os termos do art. 84, inc. XII, a competência para conceder indulto e comutar penas. Trata-se, pois, de um típico juízo de “discricionariedade” do presidente.
Esse termo é precisa e pontualmente conceituado por Di Pietro (Direito Administrativo, 15ª Ed., Atlas, São Paulo, p. 205): “E a atuação é discricionária quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o direito”.
Entretanto, complementa, a autora: “… o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador. Mesmo aí, entretanto, o poder de ação administrativa, embora discricionário, não é totalmente livre, porque, sob alguns aspectos, em especial a competência, a forma e a finalidade, a lei impõe limitações. Daí porque se diz que a discricionariedade implica liberdade de atuação nos limites traçados pela lei; se a Administração ultrapasse esses limites, a sua decisão passa ser arbitrária, ou seja, contrária à lei (id., ibidem. grifamos).
Dada, nestes termos, a complexidade do conceito, não se pode, por óbvio, restringir a análise da discricionariedade de um ato administrativo apenas sob o manto formal da oportunidade e conveniência. Como ato administrativo que é, o decreto sob comento deve estar alinhado com os requisitos de validade do ato administrativo, quais sejam, (i) competência; (ii) forma; (iii) finalidade; (iv) motivação; (v) objeto.
Os dois primeiros requisitos parecem presentes e isentos de qualquer mácula; os três últimos, todavia, não se apresentam na esteira da lei, dos princípios constitucionais da administração pública, da doutrina pátria e alienígena, nem tampouco na esteira da jurisprudência brasileira, pacífica e uníssona.

Quando a lei e o sistema legal estabelecem tais requisitos, notadamente os três últimos mencionados, assim o fazem de modo a tentar impedir o chamado “desvio do poder”. Não por outra razão que o administrador deverá, de forma detalhada e clara, expor tecnicamente a finalidade a ser alcançada pelo ato, as razões que lhe movem à prática deste, e o seu conteúdo material, que lhe justifique a medida. Destaque-se que, todos esses requisitos devem desaguar no mar da legalidade, da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37/CF), sob pena de denunciarem o desvio ou abuso de autoridade, a legitimar o decreto de nulidade, pelo controle do Poder Judiciário.
A teoria do desvio do poder trata exatamente daquela prática, pela autoridade pública, que se vale de um poder discricionário para atingir um fim diferente daquele previsto ou limitado pela lei. Na mesma diretriz, a teoria dos motivos determinantes impõe a necessidade de se apurar a veracidade dos motivos que determinaram a prática do ato, sob pena de despir-se de validade.
Ressalte-se que, num caso ou no outro, não cabe ao Poder Judiciário a análise do mérito do ato, de competência e discricionariedade do chefe do Poder Executivo; o que se atribui ao controle jurisdicional diz com os requisitos do ato, sem os quais, em sua integridade material, não poderá se converter em medida válida, pois fulminado pela nulidade estará.
Neste episódio, tenho pra mim, que a Suprema Corte deverá considerar tal análise, sobretudo no que se refere a indícios de desvio, na conduta do Presidente da República, quando (i) concede indulto a um notório apoiador de sua postura e métodos governamentais (cuja condenação se deu por conta da prática de atos ofensivos à República, à democracia e à autonomia dos Poderes, bem como da integridade física e moral dos Ministros do STF); (ii) sequer aguarda a publicação do acórdão, a ensejar a oportunidade de defesa do condenado, e o ulterior trânsito em julgado, após o que o próprio réu poderá pleitear o benefício, ou o Presidente, espontaneamente poderá concedê-lo (somente após); (iii) se utiliza maliciosamente de argumentação absolutamente descabida e tendenciosa, em seu decreto (“inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável”; “medida de freios e contrapesos”; “o indulto decorre de juízo íntegro baseado nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis”;
“ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público”; “a sociedade encontra-se em legítima comoção”) para justificar o injustificável.
Claramente inválido o decreto, sob o ponto de vista técnico-jurídico.
Mais que isto: o protecionismo prolatado às escâncaras, pelo Presidente Jair Bolsonaro, ao réu condenado Daniel Lucio da Silveira, revela uma espécie de vingança às severas críticas que recebeu da sociedade brasileira (em sua maioria esmagadora) pelas suas falas antidemocráticas, agressivas e ditatoriais, profanadas durante as festividades da Independência do Brasil (Sete de Setembro/2021), no planalto central, quando declarou expressamente que não mais cumpriria ordem judicial do Ministro Alexandre de Moraes.
Parece que está cumprindo a promessa!
Oremos pela democracia, pela República, pelo Estado de Direito, pela Constituição, e pelo povo brasileiro!
Dalton Borba é professor de Direito Constitucional há mais de 22 anos. Ativista e defensor da educação desde sua graduação no curso de Direito na Universidade Federal Mestre em Direito do Estado pela UFPR, em 2002, lecionou na Unicuritiba, e nas instituições como a Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), Universidade Positivo e no Centro Universitário UniDomBosco. É vereador de Curitiba pelo PDT.
