
Por Aroldo Murá G.Haygert, jornalista
Desta vez andei mais rápido que o Luiz Fernando de Queiroz e Elin Talarek de Queiroz, que me presentearam com estimulante leitura, o livro “Dulce Fernandes de Queiroz, receitas, raízes e recordações”, que li em duas sentadas. O ‘mais rápido’, mencionado prende-se à espera que fiquei das fotos e ilustração do livro para aproveitamento no meu site, por eles prometida.
Assim, pois, ganhei tempo para “deglutir” melhor o impacto dessa obra que tem, de muitas formas, marcas de estudo antropológico, pela oportuna pintura que faz de vivências em comunidades do interior catarinense bastante avançadas em seus anseios culturais; o olhar ( seria etnográfico?), parte de anos longínquos, anos caros a raízes familiares, no século 19, e amplia-se a partir da primeira metade do século 20 chegando até este 2021.
Joaçaba, Tubarão, Caçador, Gravatá, Herval do Oeste, Blumenau, e a Capital, Florianópolis – nessas cidades o livro desvela tempos, costumes, padrões de vida, geografias humanas e físicas. E, por que não dizer, também faces do mundo político do entorno? Nessas redescobertas, observo a montagem de um núcleo familiar sólido, dotado de estrutura resistente a borrascas do destino.
Gente que aprendeu, sob a ótica de princípios cristãos bem sólidos, a equipar-se para a vida nas suas muitas tonalidade e surpresas; para o bem e para o mal. Esses padrões não estão por acaso nas páginas do livro que borda a identidade de uma nova Cornélia (lembram-se da fábula?); são mais que pretexto para que se comparem comportamentos, “modus vivendi” pré web, e pré tudo que as surpresas tecnológicas mexeriam, promovendo desfiguração de individualidades, tradições, raízes.

Foram singulares, pois, esses tempos de Dulce; tempos em que havia até roupa especial para os domingos. Certamente que para a missa; tempos em que os encontros familiares, essenciais, ocorriam todos os dias, na hora certa, em torno da mesa, local, por vezes, de uma disciplinada “disputatio”, com todos podendo opinar sobre algum tema. Mas cientes de que a palavra final seria dos pais…O “magister dixit” prevalecia, com timbres afetivos. Como naquele momento em que, à mesa, Alexandre intercede pela filha que não queria, de jeito nenhum, comer verduras… A doce cumplicidade sobrepondo-se à disciplina de Dulce…
Os textos do livro só têm uma pretensão: fixar para as novas gerações a personalidade e existência – silenciosa e fertilíssima, ao mesmo tempo – dessa mulher a quem sete filhos, muitos netos, noras e genros votam enorme amor. Mais que isso: dedicam a Dulce respeito reverencial, enxergando nela a sólida coartífice de uma linhagem familiar transbordante de valores plantados por ela e Alexandre.
Essa série de admirações faz o forte do livro, ao mesmo tempo em que vai respondendo a muitas indagações sobre um perfil feminino – o de Dulce – ainda atualisadíssimo: ela era a mulher de voz forte, submissa apenas ao amor à família. Segura, afirmativa, jamais autoritária, dona de um receituário cuja implantação deu frutos para o todo e sempre. E ao amor, na plena expressão, ela se submeteu para fertilizar uma família moldada sob a sugestão judaico-cristã: “o fruto não cai distante da árvore”.
A propósito: quem não conhece a história do clã Dulce-Alexandre de Queiroz, trate de conhecê-la. É lição de vida. Exemplaria. Um bom começo é iniciar examinando a impressionante árvore genealógica montada por filhos do casal. Está no livro de Dulce, um trabalho que expõe, por fim, quanto o clã se valoriza. Com justiça.

Em certas minúcias, a árvore genealógica pode coincidir com momentos da História do Paraná, com o da presença do baiano Zacharias de Goes Vasconcellos, um dos pontos salientes dessa frutífera arvore. Foi o primeiro presidente da Província do Paraná (instalada em 1853) vindo da Bahia. Faço associação: o André, filho de Elin e Luiz Fernando, é também Zacharias.
Na verdade, os nomes familiares vão se sucedendo: os jeremias, as dulces, os diomários, os enéas…São marcas de um Brasil tradicional, de gente não contaminada pelos nomes, que, por vezes, calcam-se em nomes de astros ou personalidades de realezas e/ou artistas de outras terras. Doença infantil de uma cultura pop que se apressa em enterrar raízes, em nome de ser “da moda”. Triste moda.
A cada página do livro vou identificando alguns dos meus conhecidos e amigos dessa linhagem de que Dulce (Knappen, Rosa, Fernandes, Queiroz) foi a matriarca. Luise, pór exemplo, filha de Luiz e Elin, foi das netas que mais conviveram com Dulce. E Tereza de Queiroz Piacentini, dá seu testemunho sobre a mãe.Essa referencial no país pelo ensino de uma língua portuguesa “sem fraque cartola”, tem texto com agradável manejar do léxico. No livro-relicário, ela se dobra à memória, que não pode ser traída por emoções. Retrata com enorme desenvoltura, timbres d’alma de Dulce que, expressando-se com toda afetividade nas batalhas culinárias, era também a “mater” e mestra de insuperável didática.
A educadora, lembram os filhos, à hora das refeições convidava a todos a se servirem e a conversar também na língua de Molière. Dulce era professora de francês. O livro não faz hagiografia de Dulce, embora, claro, se veja obrigado a expor as muitas dobras afetivas que caracterizaram essa mãe de família de sete filhos, aos quais tinha que prover – junto com Alexandre – desenvolvimentos físico, psicológico e cultural sólidos. Com entrega de amor, um amor vital, essencial, na hora certa, sem pieguices. Afinal, ela sempre soube que estava plantando para a Eternidade. E que a Eternidade requer fibras especiais d’alma…

Um raro momento em que o livro revela expressão de dependência afetiva da personagem é quando ela, em Porto Alegre, para tratar da saúde, em carta ao marido, o classifica de tão importante em sua vida “quanto o ar que respiro…” Nessa solidez que ajudou a moldar a alma de Dulce, há uma certa “orientação” germânica (a dos Knappen). Pelo menos é o que eu – com uma visão acurada da educação “deutschen” – vou concluindo. Mas há outras influências, a partir das matrizes de Dulce, como as dos Fernandes, sólidos empreendedores da vida empresarial já no começo do século 20.
Mas mim me interessa muito refletir, no entanto, sobre toda a formação de Dulce em colégios das irmãs da Divina Providência, primeiro em sua terra natal; depois, em Florianópolis, centro formador de uma elite feminina de Santa Catarina. Lá, no Colégio Sagrado Coração de Jesus, foi estruturada intelectual e espiritualmente por germânicas religiosas – muitas delas alemãs de nacionalidade – que foram impregnando Dulce de valores permanentes, do imutável cimento de uma época de certezas. Tudo sob forte influência de um cristianismo tridentino (Concílio de Trento).
Dentro desse clima, ela encarava com naturalidade, pois, repetir em latim as orações da missa, como “introibo ad altare Dei…” Dali, daquele marco educacional, em Florianópolis, Dulce fez mais dois anos de curso superior, tornando-se professora de Língua Francesa. Enfim, sugerir a leitura “Dulce Fernandes de Queiroz” é, de minha parte, quase uma “obrigação” a homens e mulheres que procuram entender pontos salientes da alma brasileira.
No livro, de múltiplos autores (familiares de Dulce), tem-se uma amostra de quão importante é nossa “mixagem populacional”, na montagem de nosso DNA, especialmente o do Sul do Brasil. Faço uma advertência: não se distraia o leitor (a) com as receitas culinárias de Dulce. Elas são únicas.
Mais que isso: Dulce é amostra que se expõe a nossa avaliação, convidando-nos – e a seus descendentes de forma particular -, a mergulhar na História das Famílias. Para entendermos quem somos, e para onde tendemos a ir com base na herança psicológica e cultural recebida. Nisso Dulce Fernandes de Queiroz foi insuperável, é o que nos mostra a Editora Bonijuris. Imperdível.
(*) Aroldo Murá G.Haygert, 7 de setembro 2021