(De Paulo Sampaio, para o UOL)
Editado em tamanho reduzido, o print de uma certidão de nascimento impresso em “O bandido que sabia latim” (ed.Record), biografia do poeta curitibano Paulo Leminski Filho, tomou proporções épicas. O documento revela que o escritor registrou como seu filho uma criança que nunca fora chamada pelo nome averbado, Paulo Leminski Neto. Até a publicação da biografia, em 2001, o cidadão registrado acreditava se chamar Luciano da Costa. “Esconderam de mim por 32 anos que Paulo Leminski era meu pai”, diz Luciano, ou Lucky, que é músico e tem agora 53.
Nascido em Curitiba em 31 de janeiro de 1968, Lucky conta que a mãe e o padrasto o registraram de novo, em 1976, com outro nome, quando decidiram matriculá-lo na escola. Os motivos que levaram o casal a perpetrar a falsidade ideológica nunca foram inteiramente esclarecidos: “Durante 8 anos, eles me chamaram de Kiko ou ‘menino’, e me privaram do convívio com outras crianças”, lembra o músico, que cresceu no Rio. Vinte anos depois de descobrir sua identidade, Lucky ainda sente dificuldade de superar a desconsideração dos envolvidos em uma história que, segundo diz, interessava a todos, menos a ele. Toninho Vaz, o biógrafo: “A paternidade do Lucky sempre foi algo nebuloso. A verdade é que o pai, a mulher dele, a mãe e o padrasto viveram uma farsa que convinha a todos.” Em 2003, graças à confusão deflagrada pela leitura da biografia, Kiko/Luciano/Lucky/Paulo Leminski Neto mergulhou em uma crise de depressão que culminou na ingestão de 60 comprimidos de Diazepam (tranquilizante) com cerveja: “Eu não queria me matar, queria só sair daquela situação, sumir.”
Comuna e amor livre
O mistério que envolve a origem de Paulo Leminski Neto remonta a gravidez de Nevair “Neiva” Maria de Souza, mãe do garoto e única mulher que se casou no papel com o poeta — em 1965. O casal habitava uma espécie de comuna hippie frequentada por adeptos do “amor livre”. Entre os residentes estavam o jornalista Ivan da Costa, que mais tarde se tornaria padrasto de Lucky, e a poeta Alice Ruiz, que apareceu na festa de 24 anos de Leminski, em agosto de 1968, e se instalou na vida dele por cerca de duas décadas. Os dois tiveram três filhos — Miguel, Áurea e Estrela — e ficaram juntos até um ano antes de Leminski morrer de cirrose hepática, em 1989. Não há consenso em relação à data exata do começo do relacionamento de Neiva com Ivan. De acordo com o relato mais ouvido nas entrevistas, os dois teriam se tornado amantes quando ela esperava Paulo Leminski Neto. Por sua vez, Alice logo ficou grávida do primeiro filho que teve com Paulo Leminski, Miguel, que morreria de leucemia aos 10 anos.
Caetano e Wisnik
Paulo Leminski inventou um estilo que o consagrou pela linguagem coloquial, curta e acessível. Além de 600 poemas e 20 livros de prosa, ele compôs por volta de 100 músicas. Em determinado momento, atraiu a atenção de Caetano Veloso, que gravou dele “Verdura”, no álbum “Outras Palavras”, e de José Miguel Wisnik, Itamar Assumpção e Moraes Moreira, com quem criou em parceria, respectivamente, “Polonaise”, “Filho de Santa Maria” e “Promessas Demais”.
Faixa-preta de judô, Leminski cultivava um bigode que se alongava nas laterais da boca e era considerado na cena underground de Curitiba um “poeta marginal”. Criou para si um personagem excêntrico, atormentado e transgressor, que seus críticos afirmam ser mais forte que a própria obra dele. Apontado como bígamo pelos vizinhos conservadores, foi convidado a se retirar do edifício São Bernardo, onde viva na “comuna hippie”. Toninho Vaz, que o conheceu na época, diz que nunca conseguiu uma informação precisa a respeito do relacionamento entre os dois casais. “O que todo mundo falava é que Neiva se dividia entre Paulo e Ivan. Cheguei a provocá-lo com o assunto, mas ele desconversou.”
Mãe narcisista
Procurados por telefone e WhatsApp, Neiva e Ivan nunca responderam à reportagem. Lucky diz que “com certeza, minha mãe não vai querer falar desse assunto com jornalistas”. “Ela é uma narcisista perversa, mitômana, que teria sustentado até o fim o teatro que criou com meu padrasto, não fosse a revelação da biografia. Quando o Toninho os entrevistou e os avisou que me procuraria, ambos me disseram para não dar ouvidos a ele, alegando que era um ‘jornalista marrom’ [expressão que define um tipo de jornalismo escandoso e sem escrúpulos].”
Tempos depois do lançamento da biografia, Ivan se submeteu a um exame de investigação de paternidade que mostrou que Lucky não é seu filho. “Acho que ele ainda alimentava um resto de esperança, apesar de eu ser a cara do Paulo. O resultado do teste abalou muito o relacionamento com a Neiva. Depois disso, ele teve uma filha fora do casamento, que está com 15 anos agora. Mora em Rocha Miranda [subúrbio carioca].”
Cancelado em família
O relacionamento de Lucky com Alice Ruiz e suas filhas, inventariantes da obra de Paulo Leminski, não é mais fácil. “A Alice contribui na mesma medida para minha amargura. Agora que ela e as filhas não têm como negar que Paulo Leminski é legalmente meu pai, fazem tudo para me destituir, me excluir, me cancelar”, diz o músico. Alice Ruiz se mostra surpresa com a amargura de Lucky. Embora afirme que esteve com Paulo Leminski no Rio em 1976 (“eu me lembro de ter ido”), e acompanhou com ele, Ivan e Neiva o registro da certidão de Luciano da Costa, ela diz que é “a pessoa que menos tem a ver com isso”. “Se ele deve sentir raiva de alguém, é das pessoas com quem ele tem vínculo afetivo.” Mesmo tendo conhecimento do teste de DNA, Alice afirma que “não dá para saber quem, de fato, é o pai do Kiko”. Segundo ela, “muita gente entrava naquele apartamento”. Lucky acredita que a rejeição de Alice e de suas irmãs vai além do “desafeto”: “Diz respeito à herança.”
Catatau em desenvolvimento
Alice afirma que não tem o que temer. “Veja bem: a divisão dos bens do Paulo, com o Kiko ou sem, não me afeta em nada. Eu sou meeira, continuo tendo direito à metade. Ele tem de se acertar com as irmãs.” Ainda assim, ela alega que “a produção do Paulo foi nos 20 anos em que esteve casado comigo, e houve um momento em que eu trabalhei fora, para ele ficar em casa criando”. “Quando eu o conheci, o ‘Catatau’ [obra mais emblemática do escritor] era um conto de oito páginas, que se chamava ‘Descartes com Lentes’. Fora isso, havia uns poemas que não chegavam a compor um volume inteiro.” De acordo com ela, suas filhas tentaram fazer um acordo financeiro com Kiko em junho de 2020, sem sucesso: “Elas propuseram dividir tudo que se comercializasse dali pra frente. Ele não aceitou. Quer o retroativo.”
A assessoria de imprensa da editora Companhia das Letras, que publica a obra de Paulo Leminski, informa que desde 2013 lançou cinco títulos do autor que venderam cerca de 300 mil exemplares, e que não há nada previsto para o futuro. Um dos títulos, “Toda Poesia”, ultrapassou os 100 mil — em determinado momento, estava à frente do blockbuster “50 Tons de Cinza” (E.L. James) na lista de mais vendidos. Em suas tentativas de conversar com Estrela, Lucky diz que foi recebido com muita hostilidade. “Da última vez, assim que eu disse ‘alô’, ela desligou o telefone.” Alice se queixa do mesmo, em relação a Lucky: “Parei de falar com ele, era muita agressividade. Tadinho. A gente às vezes cria histórias porque não aguenta a realidade. Para isso existe terapeuta, né?”
Ataque virtual
Procurada, Estrela não chegou a falar com TAB. Protelou por mais de quatro horas a entrevista por telefone. Nesse meio-tempo, enviou dois prints de mensagens escritas por pessoas que atacavam Lucky e a mulher dele. E ainda uma foto dela com o irmão, em uma conferência pelo computador, representando uma suposta “tentativa de conversa no ano passado”. “Ele tem do lado um papagaio fake que comanda e imediatamente ele cumpre as ordens”, começava a primeira mensagem. “Estou tendo problemas com eles dois tbm…e concordo plenamente que é ela que domina, infelizmente ele está possuído (de fato), por uma pessoa que se aproveita para se dar bem”, diz a outra.