sábado, 8 fevereiro, 2025
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No dicionário de Márcio, um abecedário de verdades sutis

O “Dicionário Amoroso de Curitiba”, que o escritor Márcio Renato dos Santos lançou na noite de terça-feira, 6, nas Livrarias Curitiba do Estação, não me surpreendeu. Alegrou-me muito.

Primeiro, por confirmar o que venho descobrindo gradativamente: Márcio é alguém que faz prosa com graça, com aquilo que os franceses chamavam de “savoir dire”. Sem nunca passar da medida, do conveniente segundo o senso comum.

Sabe dizer e expor realidades importantes e que muitas das vezes permanecem numa certa penumbra. E o diz com olhar treinado. Mostra-se misto de poeta, de antropólogo, de crítico de costumes, de jornalista de pauta diária (o que é muito diferente de quem simplesmente se formou em Jornalismo ou se diz jornalista), de psicólogo habituado a desvestir almas de personagens que deambulam (às vezes penadas, é certo) por Curitiba.

O livro me alegra também porque sobretudo descubro nesse amigo o interesse de renovar a lupa sob a qual Curitiba vem sendo medida e enxergada ao longo dos anos; e insistentemente vendida por gente que a ama, é certo, mas com limitadas capacidades de decodificação desta cidade cujos meandros e esquinas não se limitam a visões binárias. E cujas vísceras e histórico são muito mais complexos do que as ‘realidades’ habituais.

Demolindo ‘verdades’

Márcio nessa nova e feliz investida em busca de cumprir sua irrefreável vocação literária, escolheu o caminho nada ‘popular’ de mostrar Curitiba, a bela, não mais sob as tradicionais vestimentas, e vergastada pelos caducos cognomes tradicionais.

Alegra-me encontrar no ‘Dicionário Amoroso de Curitiba’ um roteiro de A a Z em que as digitais da cidade recriada por Jaime Lerner, podem ser sugeridas pelo C, para o verbete Campana (Fábio) e assim examinar um dos tipos humanos imprescindíveis, essenciais da urbe; o Z, de Zeca, é direcionado a José Carlos Fernandes, indispensável cronista dessa outrora ‘aldeia sinistra’; K leva a Karam, Manoel Carlos Karam que, confesso com muita dor, embora tenha sido seu amigo e colega de faculdade, eu nunca o explorei na medida que seu espírito transbordante se expôs. O dicionário vai muito além de cumprir uma ordem alfabética, na proposta de apresentar essa que é uma das sedes da Copa (razão para a existência do livro) à descoberta dos que se iniciam na arte de nos entender.

Márcio foi muito feliz.

‘Leite quente’ perdura

Mas o livro não exclui discussões. Por exemplo, quando explicitamente garante que o sotaque tipo “leite quente está em extinção”. Até entendo um certo interesse em banir o clichê “leite quente”, mas a realidade de nosso mapa linguístico curitibano guarda essa como uma das partes mais sensíveis de nosso relicário-personalístico.

E observo que bairros, especialmente das periferias mais distantes, nos reservam ainda um viveiro de paranaenses vindos de cidades do Centro Sul – de forte formação polonesa e ucraniana -, expõem muitos homens e mulheres com o falar que se encaixa na medida do “leite quente”.

Claro que o escritor está certo: ver a cidade muito além das faturas que há dezenas de anos se expedem sobre ela é sintoma de inteligência e capacidade de enxergar além do visível. E isso é o que se espera de um abecedário para entender a vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.

Márcio Renato dos Santos-01A foto e a crítica

Para mim, o máximo desse livro é sua capacidade de expor duas dimensões juntas: fotografa a cidade a partir de nomes já históricos, mas recentes, gente da dimensão de um Jamil Snege, Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam…; e, ao mesmo tempo, registrar uma visão crítica dessa Curitiba em ebulição, com suas multidões de anônimos comendo pastel defronte à Biblioteca Pública; e a tragicomédia do comentarista esportivo que, traído no leito conjugal, faz opção por um time de futebol divisor de nossa alma; essa escolha expõe, a nós, supostos “europeus”, a triste sina dos latinos que podem aceitar todas as humilhações. Menos a de serem chamados de ‘cornutos’.

Salve o Márcio Renato dos Santos, aquele que não tem pressa em se tornar verbete do dicionário de Curitiba. Mas que, de alguma forma, já conquistou esse direito.

Como e quando?

Quando gente como Dalton Trevisan confessa ser seu leitor e admirador, conforme nos revelou na noite de lançamento do “Dicionário Amoroso de Curitiba” o enorme escritor Guido Viaro Neto, que ouviu do “Vampiro” essa manifestação. Querem maior aval, melhor símbolo de sagração?

Salve o Márcio.

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