
Grupo ultra católico já desrespeitou ordem do Vaticano para fechar escolas devido a denúncias de abusos sexuais
Imagine que uma seita comandada por homens ultra católicos de extrema direita construiu castelos imensos e igrejas suntuosas para abrigar escolas de regime de internato para crianças e jovens. Nesses internatos, os alunos passam por uma lavagem cerebral que os induz a rejeitar a própria família e os obrigam a cultuar os fundadores dessa seita como divindades. Todos os internos são obrigados a vestir uniforme medieval com correntes na cintura, botas de cavalarias e a seguir um rigoroso conjunto de regras de comportamento. Os alunos sofrem agressões físicas, verbais, assédio sexual, alienação parental, tortura, estupro e até homicídio.
Parece um roteiro macabro de filme de terror no estilo The Handmaid’s Tale, mas, segundo dezenas de denúncias, isso está acontecendo hoje no Brasil, dentro das instalações do Arautos do Evangelho. O grupo costuma recrutar crianças de origem pobre, encantando seus pais com a possibilidade dos filhos estudarem de graça em um castelo imponente, com princípios católicos e disciplina militar. Com pouco mais de 3 mil membros e cerca de 700 alunos, a associação cresceu nos últimos anos e hoje tem 15 colégios espalhados por várias cidades do país.
Em 2019, uma matéria do Fantástico revelou uma série de abusos que ocorriam dentro das escolas do grupo. A partir da reportagem, mais de 70 pessoas, entre ex-internos e pais, procuraram a Defensoria Pública do Estado de São Paulo para denunciar os crimes cometidos na principal unidade dos Arautos do Evangelho, que fica em Caieiras, São Paulo.
DECISÃO JUDICIAL
Neste mês, a Justiça determinou que todas as escolas do grupo parem de matricular novos alunos e exigiu que todos os alunos sejam mandados de volta para casa até o fim deste semestre. Na decisão, a juíza afirma que “na ideologia desta instituição, os pais representam um perigo e são até considerados inimigos por desvirtuarem os filhos dos caminhos religiosos”.
Os Arautos do Evangelho foi fundado em 1999 por João Clá Dias, braço direito de Plínio Corrêa na antiga Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a famosa TFP — o grupo católico ultrarreacionário e anticomunista que teve papel importante no golpe de 1964 e na defesa da ditadura militar.
A TFP foi uma das principais responsáveis pela organização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que conclamaram o golpe contra o então presidente João Goulart. Plínio Corrêa era escritor, advogado, professor e foi o deputado mais votado na Constituinte de 1934 pela Liga Eleitoral Católica.

TFP E PLÍNIO CORRÊA
Com a morte de Plínio em 1995, dois grupos dentro da TFP passaram por uma disputa judicial pelo controle da entidade. O grupo liderado por João Clá venceu a batalha e obteve o direito de continuar a usar a marca TFP, mantendo o legado de Plínio com a fundação do Arautos do Evangelho. Em 2001, o grupo conseguiu o reconhecimento do Vaticano pela benção do papa João Paulo II. Hoje, para surpresa de ninguém, os herdeiros da TFP apoiam Jair Bolsonaro.
Além de terem que idolatrar a figura de Plínio Correa como se fosse um santo católico, os alunos dos Arautos também são obrigados a adorar como santidades as figuras da mãe de Plínio, Dona Lucilia, e do fundador João Clá — que é considerado o único santo vivo. Uma reportagem do Metrópoles revelou que, ao ingressarem nas escolas, as crianças são obrigadas a se consagram como “escravas” do líder João Clá.
A partir daí, passam a receber como recompensa objetos tratados como sagrados como retalhos de roupa do líder, além de pedaços do seu corpo como fios de cabelo e pedaços de unha. A água utilizada para lavar as roupas de Clá também é considerada sagrada e utilizada em rituais de exorcismo heterodoxos, que não são aprovados pelo Vaticano.
As crianças são vigiadas a todo momento, não podem ouvir música do mundo exterior, não têm acesso a TV e internet e os contatos telefônicos com os pais são controlados e vigiados. Teoricamente, as crianças podem voltar para a casa dos pais nos fins de semana, mas, segundo relatos de alguns pais, na prática, são intimidadas a ficar na escola e a evitar contato com o mundo exterior.

INVESTIGAÇÃO DO VATICANO
Em 2017, o Vaticano abriu uma investigação interna contra o Arautos do Evangelho para apurar essas irregularidades e decidiu mandar um cardeal ao Brasil para avaliar seu trabalho. O resultado dessa visita foi uma ordem expressa do Vaticano para que as escolas do grupo fossem fechadas, e as crianças devolvidas para suas famílias. A ordem não foi respeitada. Após intervenção do Vaticano, João Clá renunciou ao comando, mas, na prática, continua sendo o líder absoluto da entidade.
Em 2016, a aluna Livia Uchida, de 27 anos, foi encontrada morta dentro das dependências de uma escola dos Arautos em Caieira, São Paulo, após cair do quarto andar do castelo. Segundo os líderes do grupo, ela caiu por acidente enquanto limpava as janelas. Mas a história não convenceu a mãe da jovem, que alega que os Arautos apagaram o vídeo das câmeras internas.
Apesar do arquivamento do inquérito como acidente, para o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Estado de São Paulo, que acompanha o caso, “há fortes suspeitas de que houve homicídio. Ela não caiu. Ela foi empurrada”. Depois da morte de Uchida, sua imagem passou a ser cultuada como divindade pelos líderes e alunos do grupo.
O Arautos do Evangelho tem muito dinheiro, ostentando instalações gigantescas e luxuosas. Segundo um ex-integrante do grupo que trabalhou na área financeira da instituição, a renda mensal dos Arautos em 2015 foi de R$ 11 milhões. A grana vem de doações de católicos do Brasil e de vários outros países.
Hoje estão presentes em 78 países de cinco continentes. A TFP é ativa no mundo e coordena uma rede fundamentalista católica internacional com ligações políticas com a extrema direita de vários países. O avanço internacional da TFP se deu sob o pretexto de combater o globalismo comunista. A Ordo Iuris, um instituto jurídico filiado a esse rede da TFP, ajuda a financiar os grupos pró-família no mundo inteiro. Assim como no Brasil, difundem os ideais monarquistas, mantém relações com as famílias reais e financiam campanhas contra direitos LGBTQ e contra o aborto.