quinta-feira, 21 novembro, 2024
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Mutações: O I Ching encenado

Por Jubal S. Dohms* e integrantes do Grupo Tao – O espetáculo teatral Mutações, apresentado no Guairinha, causou uma corrida às compras de ingressos, exigiu uma apresentação extra e foi efusiva e merecidamente ovacionado, com o curitibano em pé, demonstrando aquele calor que dizem não lhe ser peculiar. Não foi uma brisa ou um vento, estava mais para uma tempestade, daquelas com trovões, em que os dragões saem da terra – como nos explica o Livro Das Mutações. Concebido livremente partir da simbologia do clássico chinês, principalmente sua filosofia e os arquétipos dos trigramas, como confirmou o diretor artístico André Guerreiro Lopes para este grupo de espectadores com grande familiaridade com o I Ching, logo após o espetáculo do sábado.

O I Ching não é pouca coisa, a mais antiga obra da humanidade e fundadora da civilização chinesa. Não nasce como um livro, mas com as ideias do conjunto de linhas que depois passam a ser representadas por ideogramas, que dão início à escrita ideogramática, que acaba por ser adotada por toda a Ásia. E torna-se o pilar de toda a filosofia e da medicina chinesa e do Taoísmo. O I-Ching, livro de sabedoria, é cada vez mais considerado um conselheiro para orientar o homem no caminho da verdade.

É um livro, com muitas camadas, como também foi o espetáculo, na visão do jornalista André Nunes. Após os hexagramas, os kanjis (escrita da terra de Kan) recebe um primeiro texto do Rei Wen, em cerca de 1200 antes do tempo comum, e logo os textos das seis linhas mutáveis, pelo Duque de Chou. Depois, em 600 a. C. é Confúcio quem adiciona o entendimento conhecido como as “Asas”.

Na trupe, o contato com as coisas do oriente vem de muito tempo. O ator curitibano Luis Melo tomou contato com o inesquecível Antunes Filho. Gabriela Mellão, que responde pela dramaturgia, já usava o I Ching como um oráculo com o próprio André Guerreiro Lopes que nos contou de seus 15 anos de Soto zen budismo.

Sincronicidade

Fotos: Lina Sumizono

Fundei na qualidade de professor de I Ching, com a designer e gestora Ana Carolina Mello Schel, durante a pandemia (ou pandemonia – como queiram) um instituto voltado estudo do Tao do I Ching e ao Dharma de Buda, este em parceria com o Templo Budista Jodoshu Nippaluji de Curitiba, onde respondo pelo ensinamento de Filosofia Budista.

Na primeira reunião com o primeiro grupo, justamente este em que alunos avançados foram assistir às Mutações, geramos o hexagrama 20 “A Contemplação”, que acabou por nortear os estudos. Quando adquirimos os ingressos, geramos a partir dos números das poltronas dos participantes um hexagrama… novamente o número 20.

No diálogo com o diretor da peça, André Guerreiro contou-nos que na criação do espetáculo tive a assessoria do mestre Wagner Canalonga, atual sacerdote da Sociedade Taoista do Brasil. E que, através dele, formulou ao I Ching como ele queria ser retratado nos palcos. A resposta foi o hexagrama 20 觀 Guän “A Contemplação”! Visualmente (veja a imagem) temos simbolicamente um teatro, um local alto de onde se pode ser visto e de onde bem se enxerga.

A visão de alguns integrantes do Grupo Tao de Estudos do YiJing, do Flux Instituto de Curitiba sobre Mutações:

Aniele Borba, médica veterinária, assim descreve  “Mutações, um belíssimo monólogo a três vozes! Essa peça baseada nos trigramas do I Ching, o oráculo chinês, mostra o conflito do protagonista com seu jovem interior. Trata-se de uma grande obra de arte, onde música, cenário e toda a dramaturgia foram sabiamente elaborados. O diálogo do protagonista idoso com seu eu jovem é permeado por uma força sutil, representada pelo vento. Essa força aparece em cena para provocar as mudanças no personagem, que ora é jovem ora é idoso, como se fosse a própria consciência alertando, ensinando ou, simplesmente, observando as mazelas do ser humano. A presença do vento durante a peça pode ser sentida até pelo público, que percebe como ele passa sutilmente por entre todos que estão assistindo, como se quisesse comunicar algo”.

E finaliza constatando que “o protagonista tem sua essência exposta, seus pensamentos, sua forma de encarar sua própria juventude, que já virou passado, e tudo não passa de um instante dentro do vazio ou da eternidade.  É difícil dizer qual a melhor parte da peça, mas sem dúvida, os últimos momentos do idoso, fazendo sua travessia, em que tenta se agarrar à sua juventude, mas não consegue e acaba chegando ao portal de luz, com certeza é algo marcante”.

Christianne Aguiar, psicóloga clínica e entusiasta do I Ching, que comprou uma cadeira e não pode deixar o Rio, constata “ao fazer o movimento para assistir o espetáculo Mutações e não conseguir estar presente – por circunstâncias que se apresentaram, ao qual a mesma não considerara -, concluiu que aceitar o fluxo da vida é aceitar que somos veículos de possibilidades para nós assim como para outros. Estar fora, significa que outros estarão dentro, e essa dança de centro e periferia é uma das mais belas.

Fotos: Lina Sumizono

Claudia Maria dos Santos Dohms, empresária, que conhece o I Ching desde os anos 80, reconheceu que “o I Ching é sempre uma surpresa. Transportado ao palco não poderia ser diferente; a mutação dos milenares trigramas agora na paisagem do teatro contemporâneo ainda prossegue sendo o milenar e sábio livro chinês”,

Claudio Galiotto, psicólogo junguiano e estudante de I Ching do Instituto Flux, que veio de Taubaté, São Paulo, para comemorar o seu aniversário assistindo a peça com seus colegas de oráculo, registra que “a peça mexeu profundamente comigo. Acredito que há diversas maneiras de falar sobre o espetáculo e sem riscos de “spoiler”, pois é como admirar uma obra de arte; cada um vai ter suas próprias percepções, sensações, compreensões e incompreensões, ou seja, hexagrama 20 “Contemplação”. O espetáculo foi poético do início ao fim, se é que teve fim, pois ainda ressoa dentro de mim. A ideia mais forte, que o I Ching está totalmente fora da concepção linear de tempo que nós temos: passado, presente e futuro. A interação entre os três atores, representando três linhas de um hexagrama – um trigrama: um homem velho, uma mulher de meia-idade e um homem mais jovem, retrata o passado, o presente e o futuro interagindo no aqui e agora, em um campo de forças de pura transformação. E, o que está se transformando em mim aqui e agora? O que precisa ser contemplado em mim? Sob quais perspectivas posso contemplar? O que de mim, do meu interior, foi representado nesse espetáculo? Eis algumas indagações que surgiram. Senti medo quando veio a escuridão total. Fiquei incomodado com a luz intensa – luz demais que me deixou cego. Tive vontade de falar quando houve silêncio e de pedir silêncio quando houve barulho. Tudo muda. O palco, os personagens e eu. O vento me trouxe um alento, um sopro e a certeza da impermanência. Ri e chorei ao lado do mestre”.

E conclui “contemplei a passagem da minha idade e, ao mesmo tempo, senti que o eu do passado, o eu do presente e do futuro estão conectados e contemplando a mesma coisa – a vida acontecendo no aqui e agora. Retornei ao norte e, no dia em que Sol, Lua e Terra se alinham, e escrevo estas linhas cheias de emoções, sentimentos e sensações, interrompidas da correria do dia a dia, da racionalidade e com a certeza de que elas irão mudar daqui a muito pouquinho”.

Daniel Altino de Jesus, químico,  expressou que em sua visão “a peça é a narrativa da contemplação da vida carregando seus dramas, comédias e tragédias. O jovem não quer ceder a passagem do tempo, não compreende o tempo e as mutações da vida sobre as pessoas e a natureza das coisas. Tive também a percepção da ação da dualidade no personagem da peça e o conflito interno com ele mesmo, porém existia uma força apaziguadora feminina que remetia ao equilíbrio”.

Flávio Augustino Back, Profissional da Educação Física, confessa “humildemente compartilho uma impressão muito superficial sobre a peça mutações. A velocidade das mudanças das cenas chamaram a minha atenção, manifestada nas mudanças de posição corporal, de perspectiva dos três artistas ao longo das cenas.”

E prossegue “na vida, realmente, as coisas mudam muito rápido e a mente (coração) também. O contraste do velho com o jovem evidenciou o que o meu falecido avô sempre dizia, que a dor ensina a gemer, que as vivências forjam o conteúdo interior, ressaltando, para mim, a importância da sabedoria dos antigos para orientar a juventude ansiosa. Feliz do jovem que aprecia e pede orientações aos antigos; na peça numa determinada cena enxerguei uma imagem do jovem apenas comunicando ao velho, mas não parecia ouvi lo. O velho o questionava, refletia sobre suas declarações. Naquele momento pensei que o jovem manifestava um coração que parece sempre precisar de estímulos externos para ser feliz, numa busca incessante, não necessariamente de um jovem, mas poderia ser de qualquer um que dê muita importância aos assuntos temporários mais do que o necessário. Enfim, na minha percepção, os três artistas eram muito habilidosos e conseguiram expressar belamente, sobretudo a artista mulher, as mutações que permeiam a vida. Sinto que não consegui captar a profundidade que a peça entrega, me faltam recursos para isso. Sou grato por poder ter assistido a peça e ter sido presenteado por toda a entrega dos artistas, de toda a equipe de apoio e em especial do diretor da peça, que humildemente e generosamente interagiu com meu grupo ao final do espetáculo de forma bastante atenciosa e comovente.”

Magda, Flávio, Jubal, André, Aniele, Daniel, Claudio, Hique e Claudia. Foto: Liliane Castro

Hique Veiga, ator, palhaço e advogado registra que “convidado a escrever sobre o espetáculo “Mutações”… o que me parece é que tenho pouco a escrever, pois entendi muito pouco da peça, assim como, muitas vezes, ao ler o livro… também… entendo muito pouco. Pois muito não é sobre entender. É sobre sentir, vivenciar, experienciar. Na natureza… pra além do ser humano… há muitos seres, elementos que vivem de maneira plena e em harmonia, sem entender nada… sem significar… apenas e tanto sendo e vivendo. O que o vento, ou a água, ou uma árvore, ou um pássaro entende disso tudo? Da vida? Eles não entendem. E por isso vivem. Pois, talvez, não há nada para entender. Porque, talvez, “o entender” nem exista. E isso não é ruim. É o que é. São imagens, sensações, poesia… algo que para cada pessoa é visto, ouvido, sentido de forma única. Assim como no livro, são as mesmas palavras escritas, as mesmas imagens descritas, mas para cada pessoa é um livro… e mesmo para a mesma pessoa… o mesmo trecho se lido em outra época, momento, dia, situação… será uma nova experiência. No espetáculo o que mais me tocou foram as imagens, o som, os elementos. A cena do movimento do vento é maravilhosa… é algo lindíssimo… porque é… e é… e continua sendo”.

Liliane Castro, bibliotecária, afirma que “assim como Jung descreve no seu prefácio de Mutações, ‘Como se fora uma parte da natureza, espera até que o descubramos’, descobri o I Ching através de um convite inesperado a esta peça (que não conhecia) e foi uma experiência sensorial intensa de luz e escuridão. Um encontro com a poesia e a filosofia oriental em forma de teatro.

Magda Fidelis de Lima, cantora, expressou “fiquei admirada com os atores, técnicas, cenografia, perfeitos”. E nos apresenta o poema que lhe veio:

ESPELHO

Contemplei!
E sobre mim
Mais aprendi”

*Jubal S. Dohms, monge em formação, especialista em Psicologia Analítica e Religião Oriental e Ocidental, professor de I Ching e de Filosofia Budista, criador do Instituto Flux, diretor vice-presidente do Instituto Ciência e Fé.

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