terça-feira, 18 novembro, 2025
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Memória Cultural: Galeria Cocaco

Aroldo segue o capítulo sobre a Galeria Cocaco que você escreveu para o meu livro “A Rua e a Bruma, a Régua e o Compasso”, romance da Revolução Urbana de Curitiba. 

Dante Mendonça, jornalista e escritor

Foram muitos os motivos que levaram “meia Curitiba” à exposição de Gérard Lauzier na galeria Cocaco. O primeiro deles, a própria galeria, ponto de encontro de múltiplos talentos e um local de descobertas – como sintetizou o jornalista Aroldo Murá G. Haygert mais de 50 anos depois:

 

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

Um passeio pelo espaço de exposições que foi mais do que isso, uma escola de livre pensar, abrigo de artistas de todas as idades e estilos. A Galeria Cocaco foi capital na Curitiba dos anos 1960, um centro de
efervescência cultural. Indissociável da cidade inteligente que começava a entender o papel do “marchand de tableaux” e dos vernissages. Era nosso ar cosmopolita no melhor entorno de preocupações com valores
municipais, a Boca Maldita.

Serei o mais objetivo possível, não vou deambular em cima daqueles dias que me marcaram muito, até porque fui mais espectador, e não o ator, do fascinante mundo que lá se desenvolvia. Repórter desde o primeiro dia de minha vida, acabei atuando no jornal mais importante de Curitiba dos anos 1960 – “Diário do Paraná”, da “Cadeia Associada” – o que me levou a conhecer os atores daquele centro de efervescência cultural. Mais adiante, comecei uma coluna chamada “Vernissage”, nome explica o conteúdo. Ao mesmo tempo, passei a dirigir o “DP Domingo”, suplemento dominical do jornal que, de alguma forma, tentou repetir o impressionante caderno cultural do DP que Sylvio Back editaria e com a colaboração de um timaço de atores das letras e artes locais.

Antes é preciso dizer: a Galeria de Arte Cocaco, na Rua Ébano Pereira, 52, ocupando uma pequena casa onde hoje existe um enorme edifício de escritórios e de estacionamento, foi criada nos finais dos anos 1950 por Ennio Marques Ferreira e Alberto Nunes de Mattos. Depois, em 1957, Ennio troca de sócio, com a entrada de Manuel Furtado, rebatiza o local como Cocaco e chama para a reinauguração o mineiro paranaense Loio Pérsio, um artista plástico nunca devidamente lembrado pelos curitibanos.

Último local da Galeria Cocaco, na R. Comendador Araujo

Ele foi casado com a também artista plástica Violeta Franco. Quem contou, com detalhes, pontos salientes da história da Cocaco foi a crítica de arte Adalice Araújo (a quem Ennio e eu revelamos para a área, conforme ela tantas vezes registrou em depoimentos, como o dado ao “Memória Bamerindus”, à disposição no Museu da Imagem e do Som).

A Cocaco da qual melhor posso falar é aquela dos anos 1960/70. Ficava ali mesmo, na Rua Ébano Pereira, 52, espaço acanhado para explicar o magma cultural que teve. No final, ela se mudou para um casarão da
Comendador Araújo, ao lado do Shopping Crystal, onde fechou as portas definitivamente em 1993. No último endereço, continuou com sua “missão aglutinadora” de artistas. E passou a ser também uma loja em que se vendiam obras de arte.

A Cocaco dos anos1960/70 era um ímã para os artistas, para o mercado comprador de artes que então se iniciava profissionalmente, para os jornalistas e até acadêmicos antenados para a revolução cultural que
estava acontecendo em Curitiba. Ao mesmo tempo, conciliava em seu espaço uma novidade: lá o ucraniano Pedro Kuratz, pai de Eugênia Petriu, a nova dona da Cocaco, fazia contatos para a venda de seus móveis na linha mais para o clássico, ou aquele estilo que todos resolveram chamar de “colonial”. Eram móveis pesados, de qualidade, muitas peças de imbuia, árvore que só de 200 anos em diante pode ser aproveitada comercialmente.

Móveis de nogueira também estavam lá, já raridade mesmo para aqueles dias.

Ucraniano formado nas melhores escolas de movelaria, seu Pedro tinha fábrica na Rua Saldanha Marinho, e com ele trabalhava Demétrio, que então era casado com Eugênia, a “marchand de tableaux” com sólidos
conhecimentos de história da arte. Ela se formara em Belas Artes pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Até por suas ligações com o mundo acadêmico da EMBAP (no prédio histórico hoje em ruínas, na Emiliano Perneta), Eugênia atraia notáveis das artes plásticas, como os mestres Theodoro De Bona, Lopes, Guido Viaro e Artur Nísio, às vezes a pianista Henriqueta Penido Monteiro Garcez Duarte.

Mas quem  movimentava mesmo a Cocaco era uma juventude inquieta, hoje ilustres setentões ou nos 80 anos de idade, que marcavam ponto todas as tardes na galeria. Lá conheci e me tornei amigo de muitos dos hoje mais representativos artistas paranaenses, como Fernando Calderari (sempre de cara fechada, mau humor aparente para esconder um coração enorme); João Osório Brzezinski; Juarez Machado (e seu primo Jamaia); o francês Cheval (que fazia os cenários dos programas da então TV Paraná, Canal 6); René Bittencourt (artista plástico da mocidade dourada da Cocaco); Fernando Velloso (recém-chegado de Paris), Wilson de Andrade e Silva (o Espigão); Waldemar Rosa e sua filha, a apresentadora Xênia (sumiram de Curitiba); Luiz Geraldo Mazza; o crítico de artes e jornalista de “O Estado do Paraná” Aurélio Benitez; os arquitetos Marcos Prado e Manoel Isidro Coelho; Mário Rubinski (por onde anda?), Cleto de Assis (artista múltiplo, um valor ainda não reconhecido na sua ampla dimensão); Aramis Millarch, o repórter insuperável da vida cultural da cidade, com nome estabelecido no país. Não posso omitir o nome de Hélio Puglielli, intelectual de peso que o jornalismo tomou emprestado por dezenas de anos como editorialista. Era eventual habitué da Cocaco.

Também fazia parte desse “carnet” Suzana Munhoz da Rocha. Às vezes, nomes com indicativos de internacionalização futura passavam por lá, deixavam ideias e projetos surpreendentes, como o judeu polonês Frans Krajcberg, que na época trabalhava na Klabin, e depois se tornaria um referencial mundial na preservação ambiental. Valêncio Xavier, já se fazia acatado com suas crônicas que muitas vezes editei no DP, era outro habitué da Cocaco; Jefferson Cesar, pintor com suas casinhas identificadoras; a gravurista de vida curtíssima e enorme potencial, Gilda Belczak; Hugo Montanari, “fac totum” da Biblioteca Pública do Paraná e artista plástico com seus peixes desenhados com sofisticação também eram parceiros naquele universo onde, por vezes, em momentos diversos, encontrei minha amiga Violeta Franco, que havia anos antes conseguido um feito surpreendente: instalou a “Garaginha”, na garagem de sua casa, Avenida Iguaçu, e de lá fez uma escola informal de artes e debates artísticos, com gente de primeira, como Fernando Velloso, Poty e Loio Pérsio.

A Cocaco expunha valores, abria-se para ser um mercado de artes. Criava o mercado de artes visuais curitibano que, anos mais tarde, teria seus pontos de efervescência nos endereços do “marquês” Jorge Carlos Sade, criador da Galeria Acaiaca, e Galeria Ida e Anita. Com Sade e sua enorme capacidade de armar brigas na área cultural, assim como a imensa capacidade de juntar pessoas, foi abrigando nomes de uma nova leva de grandes artistas, como Bia Wouk, Carlos Eduardo Zimmermann, Osmar Chromiec, Rhones Dumke, Eliane Prolik.

Eugênia não se importava com as negociações paralelas  de obras de arte que lá se dessem, independente de sua galeria. Num certo tempo, já mais para os anos 1970, contou com uma jovem belíssima, simpática, interessada em aprender tudo à sua volta, Maristela Quarenghi, que depois se tornaria Maristela Requião de Mello e Silva, senhora Roberto Requião.

Nilo Previdi, um comunista convicto, doutrinador persistente, pintor de realidades sociais, um tanto estigmatizado por causa de suas bandeiras marxistas, era personagem obrigatório das tardes – e às vezes manhãs – da Cocaco. Assim como advogados que iam se tornando notáveis, como Eduardo Rocha Virmond e René Dotti – este mais ligado ao teatro. Eddy Franciosi, jornalista do DP e diretor de teatro, por vezes ia ao endereço da Ébano Pereira, muitas vezes com Lala Schneider, sempre elegantemente trajado, e mantendo uma distância “regulamentar de todo mundo”.

Ah, não posso me esquecer, nunca, de dois artistas plásticos de primeiríssima que faziam parte daquele mix da Cocaco, conferindo uma alma especial ao endereço: os pintores Mário Rubinski e Jair Mendes.

Como não esqueço de um ícone do mundo cultural de Curitiba, Paul Garfunkel, o aquarelista, pai de Fanchette, sogro de Karlos Rischbieter, e avô de Mônica e Luca Rischbieter, um tipo fisicamente notável e de personalidade fortíssima, engenheiro formado na “Politécnica” da França, que passava por lá todas as tardes. Guido Viaro era outro ícone, estrela consolidada da vida artística, que andava poucos passos, quando tinha tempo, para chegar à Cocaco: no porão da Biblioteca Pública do Paraná, vizinha à Cocaco, ele dirigia o Centro Juvenil de Artes Plásticas de onde revelaram-se nomes como Carlos Eduardo Zimmermann.

O mundo da Cocaco eu o acabei associando, ao longo dos anos, a realidades tristes, como a do malandro que, estudante de um cursinho, nas aulas conheceu a pintora Helena Wong, e dela conquistou o coração. Acabaram casando e a artista – ímã da Cocaco – seria vítima de puros interesses mercenários. Wong sofria de reumatismo deformante, era de família chinesa muito rica, o que gerou um longo e penoso processo de separação daquela figura beatífica de seu algoz que a atormentou e maltratou.

Carlos Eduardo Zimmermann: geração dos 1970

Só não enxergou a importância da Cocaco nos anos 60/70 – na fase em que era basicamente galeria de arte sob a direção de Eugênia – quem não teve olhos para ver. Aquele termômetro cultural de uma Curitiba ainda acanhada e parca em ofertas artístico-culturais, era mais ou menos alma gêmea da vizinha Biblioteca Pública do Paraná, onde, sob a influência de Ennio Marques Ferreira, Fernando Velloso e Eduardo Rocha Virmond, as artes plásticas locais caminharam para a maturidade. Mesmo que, na BPP, por empréstimo, tendo sediado a grande mostra do Museu de Arte Moderna que Virmond dirigia e que acabou trazendo para a BPP obras  dos muralistas mexicanos, como Rufino Tamayo, Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros.

Tenho para comigo que aquele perímetro Cocaco-BPP era imantado pelos deuses, tudo lá dava certo. E os que por lá passavam deram frutos abundantes num tempo em que nem sonhávamos com Internet ou avanços tecnológicos. Tempos de quadros e livros. Tempos, é verdade, em que novos ricos vindos com carteiras cheias do Sudoeste e do Norte do Paraná, compravam livros e quadros aos metros. Para felicidade de decoradores e ‘decoratrizes’, como diria Jorge Carlos Sade, que não me lembro de ter visto na Cocaco.

Também vi por lá, muitas vezes, Rogério Moura Dias (o pintor dos passarinhos, uma vez em briga, na porrada, com o agitador cultural Antônio Carlos Gerber). Em compensação, Filomena Gebran era didática presença de especialista em história da arte que a todos escutava, com todos refletia em torno da arte. Ela deve ter sido provocada muitas vezes a falar do suicídio de Miguel Bakun, um dos temas sempre presentes nas chacrinhas da Cocaco.

Assunto que, por envolver, ao que se sabe, injustamente, um dos ícones da gestão cultural do estado, pessoa ilibada, era tratado com muita cautela. Uma cautela que não impediu que os quadros de Bakun atingissem alta procura e preços nas alturas. Hoje telas de Bakun  disputam espaços em galerias paulistas. Ele foi, de alguma forma, ‘filho dileto’ do eixo BPP-Cocaco, na época o “must” da vida inteligente da cidade. Um “must” que não dispensava, por exemplo, o olhar crítico de uma das mulheres mais inteligentes e fascinantes daqueles dias, e de sempre, Cassiana Lacerda.

Cassiana Lacerda

Tenho que anotar, ainda, mas não menos importante: a presença quase univitelina de Nelson Matulevicius (escultor) e seu irmão Sérgio Matulevicius (jornalista). Assíduos no dia a dia da Cocaco e da fermentação cultural que crescia na Boca Maldita, eles batiam ponto no endereço. Os dois nos deram impressionante exemplo de amor fraternal, com Sérgio cuidando integralmente dos dias finais de Nelson, que fora acometido de derrame cerebral.

A fauna humana que compunha aquele cosmos da Cocaco era enorme, multiplicante. Lembro ainda da presença segura de Sônia Regis Barreto, intelectual que depois teria sua efêmera galeria de artes, uma especialista em história que depois atuou na USP. Claro que outros nomes estarão sempre associados àqueles dias, na maioria das vezes como essenciais daquele espaço imantado de saberes visuais, como Maria Elisa Ferraz de Campos (depois, Paciornik), Vânia Schüssel (depois, Viaro), Constantino Viaro, Telmo Faria, o ator, e Carlos Mazza.

Ah, por último: um dia de 1961, entrevistando o grande mestre da pintura paranaense, da escola animalista, formado na Renânia Palatinada, Arthur Nísio, em seu ateliê próximo ao Cemitério Municipal, ele simplesmente marcou nosso novo encontro assim: “Te vejo terça-feira, à tarde na Cocaco”. E isto bastou. O endereço era parte da alma de gente muito especial.

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Biblioteca Pública do Paraná

Lá pelos anos 1960, certa feita a pacata Curitiba se alvoroçou com a mostra, na Biblioteca Pública, de uma pintura de Van Gogh.

Acostumados a fazer fila até para ler as manchetes de jornais nas bancas de revista, os curitibanos ficaram encantados com a exposição da célebre obra, até então só vista na revista O Cruzeiro.

Não se falava de outra coisa na cidade:

– Conhece as pinturas do Bakun?

– Quem? Aquele polaco doido de pedra que acabou de se matar?

– Ele mesmo. Pois o Bakun é o nosso Van Gogh com duas orelhas!

O pintor Miguel Bakun (1909/1963) é considerado um dos pioneiros da arte moderna no Paraná. Filho de imigrantes eslavos, depressivo como Van Gogh, Bakun acabou por se matar no seu ateliê, aos 53 anos. Em 1948 foi comparado a Van Gogh pelo renomado crítico e tradutor Sérgio Milliet.

Na Biblioteca Pública, no meio daquela extensa fila para ver a obra do holandês, uma frequentadora assídua da coluna social do Dino Almeida perguntou ao jornalista Fernando Pessoa Ferreira:

– Van Gogh é nome ou apelido?

– É apelido, minha senhora. O nome é Kirk Douglas!

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