Os compêndios jurídicos na antiga Roma eram pródigos em ensinar que a propriedade, em seu conceito original, se referia ao bem de uma única pessoa, excluindo-se qualquer outra. Jurisconsultos da época se assombravam com a ideia de que a titularidade de uma propriedade pudesse se multiplicar como se fossem peixes ou pães em uma passagem bíblica.
Entre os favoráveis a esse conceito estava o senador Públio Juvêncio Celso Tito Aufídio Ênio Severiano (em latim Publius Juventius Celsus Titus Aufidius Severianus), mais conhecido como Celso.
Aos que defendiam o condomínio, termo que só se popularizaria com o avanço da especulação imobiliária na administração do imperador Nero, o senador replicava asperamente: duorum vel plurium in solidum dominium vel possessionem esse non potest*, alheio à maneira risível com que pronunciava as vogais.
A prosódia entusiasmada do jurista, entretanto, não seria suficiente para excluir a evolução fática e, sobretudo, jurídica, a respeito do domínio pertencer a mais de uma pessoa, desde que o seja por quotas abstratas. Sintetizava-se assim o princípio nec quisquem patis corporis dominus est, sed totius corporis pro indiviso pro parte dominus habet**, que seria aplicado posteriormente, e com mais êxito, em aulas de anatomia e de educação sexual.
Celso, que era filho de um jurista de pouco renome chamado Juvêncio Celso, se ressentia do fato de seus ditos famosos não ganharem a importância que mereciam. Fora ele o criador da máxima impossibilium nulla obligatio est (“Não existe obrigação de realizar o impossível”), que havia sido incorporada ao moderno sistema legal. E, no entanto, Plínio, o Jovem, fora ingrato o suficiente para classificar sua retórica como um miasma de tolices. Sua crítica fora ainda mais acintosa porque Celso, ao apresentar em público o seu dito ius est ars boni et aequi (“A lei é a arte do bom e do justo”) –, sublinhara as duas últimas palavras, apontando para si mesmo.
Depois, diante do vexame de ver seu Novo Código de Leis Romanas ser rasgado por seus pares, saiu-se com a ideia de que “saber a lei não significa conhecer suas palavras, mas sim sua intenção e objetivo” (scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem). No que recebeu uma sova que o deixou em cama por duas semanas.

Celso não viveria para ver a sua doutrina escorraçada e jogada às traças. Nos anos que se seguiram, e estamos falando do século 2 da era comum, a concepção do condomínio entendido como uma comunhão de domínio na feição de fração ideal ganharia cabeça, tronco e membros. Primeiro apontando para um novo negócio no horizonte, as ínsulas. Depois, conjugando a prática e teoria, nessa ordem, para determinar a origem evolutiva do condomínio edilício, em que se admitia a construção de moradias sobrepostas utilizadas exclusivamente por seus donos.
Falar em ínsulas ou em prédios verticais em regime de copropriedade era uma heresia ao direito romano porque a lei civil se valia do princípio da superficies solo cedit como um dogma. Era, portanto, o solo indissociável à superfície. E pertencente apenas a um dono. Edificações com pavimentos que tivessem mais de um proprietário eram inconcebíveis. Ainda mais porque havia um pêndulo imaginário na instituição da superfície solo que julgava se o dono da propriedade iria para o céu ou para o inferno. Se ficasse na superfície tanto melhor, porém a profundeza da terra era uma possibilidade. Ele que andasse miudinho.
Apesar disso, a semente fora plantada.
Entre o fim da República e o início do Império Romano (27 a.C.), a necessidade se impôs e as moradias coletivas passaram a dominar o cenário urbano. O direito se adaptou à realidade. E o fez com uma vírgula.
“O direito de propriedade era I) exclusivo, II) absoluto e III) vitalício”, diz Arthur Virmond de Lacerda no livro “Herança do Direito Romano”. A menos que (eis a vírgula), “por exceção, houvesse condomínio ou servidão. No condomínio, mais de uma pessoa possuía, simultaneamente, a mesma coisa, cuja propriedade não era individual, porém compartilhada e, portanto, o direito de cada um coexistia com direito igual dos outros coproprietários”.
Roma teria que concordar com essa ideia porque cidades populosas são densas e verticais. Essa regra está em vigência até os dias de hoje. Os ambientalistas estão certos quando afirmam que estamos acabando com nossas reservas naturais, mas não em razão da expansão populacional. Ah sim, a Amazônia. Contudo não se promovem queimadas para que se instale no espaço devastado um sem-número de peregrinos.
Edward Glaeser, em “Triunfo da Cidade”, assinala que, num planeta com muito espaço, toda a humanidade caberia no estado do Texas, cada um com uma casa própria. E isso não contradiz a afirmação de que o número crescente de homo sapiens pode levar à ruína do planeta se consideramos o prejuízo ao ecossistema, não a demografia.
Pensamos na Roma antiga e nos vêm à cabeça o coliseu, as casas senhoriais, as ruas pavimentadas e as termas, onde se fazia de tudo, inclusive tomar banho. Pois tratemos de adicionar à paisagem os condomínios residenciais, as ínsulas, que era o local de moradia da maior parte do 1 milhão de habitantes na capital da Europa em seu auge.
Escolhia-se Roma não só porque todos os caminhos levavam a ela, mas porque era nas cidades, com grande concentração populacional, que as explosões intelectuais ocorriam. Assim, o renascimento em Florença, a revolução industrial em Manchester e Birmingham, o boom das finanças em Nova York e o bolinho de chuva em Portugal, obra de um cientista que, a princípio, pensava em criar uma cola misturando farinha de trigo e água. Na verdade, ele fez as duas coisas.

A diferença é que ao menos essa explosão de crescimento e genialidade que ocorreu em Roma e em outras cidades, motivado pelo perfil gregário dos indivíduos e do trabalho, não se transformou em distopia cinematográfica. Desde “Metrópolis” (1927), de Fritz Lang, e mesmo antes, não se pensa em outra coisa. Cidades são o centro da exploração do trabalho, o descaminho dos retos, o foco das doenças morais e fisiológicas, a fonte dos desequilíbrios climáticos, a terra dos ímpios, etc etc etc.
No século I, antes mesmo de Nero jogar os cristãos aos leões ou os leões aos cristãos (tudo é uma questão de torcida), havia 46 mil insulae, plural de ínsula, na cidade de Roma. O nome quer dizer “ilha” e era usado para dar nomes aos quarteirões que se constituíam em ilhas entre as ruas.
Marco Aurélio Crasso, aliado e financiador de Júlio César, era o homem mais rico de Roma e devia boa parte de sua fortuna à especulação imobiliária. Ele construía e alugava ínsulas que abrigavam dezenas de pessoas em apenas uma edificação de pavimentos sobrepostos.
Os prédios tinham até nove andares e não eram mais altos porque Augusto, o primeiro imperador romano, impôs uma limitação de 20 metros. Mesmo assim era frequente a construção de puxadinhos ou andares ilegais frágeis a intempéries, desmoronamentos e incêndios. Não necessariamente nessa ordem.
Marcus Gomes é jornalista e advogado. Escreve sobre política, direito e assuntos do dia a dia.