
Voz crítica no meio evangélico em relação ao governo Bolsonaro, pastor Ed René Kivitz critica episódio envolvendo o disparo acidental de Milton Ribeiro e a atuação de lobistas no MEC
Por Eduardo Gonçalves – O GLOBO
Um dos líderes evangélicos do campo progressista mais influentes do país, o pastor Ed René Kivitz criticou, em entrevista ao GLOBO, o episódio em que o pastor e ex-ministro do MEC Milton Ribeiro se envolveu em um disparo no aeroporto de Brasília e a posição de alguns evangélicos de hastearem a bandeira do armamentismo. Segundo ele, “toda e qualquer tentativa de usar Jesus como garoto propaganda de uma cultura bélica e armamentista é uma distorção do Evangelho”. Ainda de acordo com Kivitz, o governo Bolsonaro não tem apenas manchado a imagem dos evangélicos como “traído” o espírito do protestantismo no Brasil. Ele é hoje uma das vozes dissonantes em relação ao atual governo dentro do segmento religioso.
À frente de uma das maiores Igrejas Batistas de São Paulo e pregador há mais de 30 anos, Ed René afirma que as grandes lideranças evangélicas têm buscado hoje um “projeto de poder político e hegemônico” por meio de Bolsonaro, um projeto que os evangélicos combatiam no passado quando esse poder era exercido pelos católicos. “O Brasil de hoje crucificaria Jesus Cristo”, afirma ele, que chegou a ser expulso da Ordem Batista de Pastores de São Paulo no fim do ano passado por defender uma “atualização” da Bíblia para “o mundo de hoje”.
Como o senhor viu o episódio em que o ex-ministro Milton Ribeiro, pastor presbiteriano, efetuou um disparo acidental no meio do aeroporto?
Fui educado tendo como exemplo e inspiração o pastor Martin Luther King Jr, Nobel da Paz, que escolheu seguir a Jesus à luz de uma longa tradição de cristãos pacifistas e pacificadores, deixando ao mundo o legado da resistência não-violenta como estratégia de enfrentamento da brutalidade do mau. Não sou ingênuo quanto às dificuldades para o desenvolvimento das políticas de segurança pública, responsabilidade do Estado, mas causa-me absoluta estranheza ver tantos pastores defendendo o bangue-bangue como resposta à violência que assola o país.
Como o senhor vê a defesa do armamento civil por líderes evangélicos? Acha compatível com a ética cristã?
Jesus é apresentado na Bíblia como “príncipe da Paz”. Ensinou que bem-aventurados eram os pacificadores, porque seriam chamados filhos de Deus. Na iminência de sua morte, sob um império brutal e violento, prometeu aos seus discípulos: “dou-lhes a minha paz, não a paz do mundo”. Com isso, não apenas denunciou a “pax romana” que se impunha pelo poder das armas, como principalmente apontou o caminho para uma justiça que deveria ser conquistada na força do amor. Toda e qualquer tentativa de usar Jesus como garoto propaganda de uma cultura bélica e armamentista é uma distorção do Evangelho.
Como o senhor viu essa crise recente do MEC envolvendo um ministro pastor e dois líderes religiosos que atuavam como lobistas?
O gabinete paralelo operado por pastores no MEC é um esquema criminoso e está nas páginas da corrupção. Os envolvidos devem ser tratados nos termos da lei. O maior problema do MEC, entretanto, é aquilo que não pode ser tipificado como crime e afeta o futuro de uma geração de estudantes e do país. É essa visão retrógrada e anacrônica da forma que está sendo tratada a educação no Brasil. Na sua chegada ao Brasil, o protestantismo era uma força progressista no que dizia respeito à educação. Hoje representa aquilo que há de mais retrógrado no país. Quantos mestres e doutores estamos deixando de formar por causa de uma orientação conservadora, fundamentalista e religiosa?
De que forma episódios como esse dos pastores lobistas do MEC mancham a imagem dos evangélicos no Brasil?
Não é só uma questão de manchar, e sim de trair os princípios originais de um protestantismo que foi pioneiro na educação do Brasil. Todas as denominações históricas investiram fortemente na educação e no ensino superior. E um dos princípios delas é a separação entre religião e Estado. Há hoje, no entanto, algumas lideranças que acreditam que a igreja tem um chamado para governar. E essa confusão de fronteiras em que a igreja assume postos chaves do Estado para impor a sua visão de mundo e consciência àqueles que não tem a mesma compreensão de fé. Isso é uma traição ao protestantismo na sua raiz. A grande confusão do movimento apostólico aconteceu só a partir da conversão de Constantino, no século 4. Ou seja, a igreja caminhou por mais de três séculos como consciência crítica do Estado. Há um equívoco com o que está acontecendo no Brasil hoje, e o MEC é apenas um sintoma do que está acontecendo.
Na sua opinião, o presidente Jair Bolsonaro representa o segmento evangélico e carrega os valores cristãos, como dizem seus pastores aliados?
Vou me manifestar a partir daquilo que vejo. Primeiro, observo que ele está no terceiro casamento. Segundo, que o governo dele é caracterizado por mentiras, fake news e o gabinete do ódio, embora use como slogan o versículo bíblico “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Terceiro, ele faz declarações que são machistas, misóginas, homofóbicas e racistas. Faz elogios à ditadura e tem como herói pessoal um torturador. Isso são valores cristãos? O presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de um único gesto de empatia e solidariedade para com o povo brasileiro, que chorou o luto dos seus entes queridos na pandemia, em tragédias naturais e na violência das ruas. Ele não conseguiu expressar um mínimo de compaixão, foi apenas irônico, sarcástico e deselegante. Então, eu não consigo identificar o presidente como um homem que carrega a bandeira dos valores da fé cristã.
Mas qual a sua avaliação sobre o mote da campanha dele (“Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”) e as constantes aparições dele em igrejas e orações?
Eu penso que essa apropriação dos símbolos da fé cristã é um oportunismo estratégico de marketing político. Antes, ser evangélico era ser pobre e ignorante. Sempre fomos invisibilizados e desrespeitados. Mas agora a igreja se tornou numerosa, rica e influente – portanto, poderosa. E inconscientemente verbaliza à sociedade uma exigência de respeito: “Nós existimos e a nossa voz deve ser ouvida”. E a primeira liderança política que percebeu e capturou isso em seu benefício foi o Bolsonaro e o bolsonarismo. Até o Bolsonaro ninguém queria falar com a igreja evangélica, agora todo mundo quer falar com a gente, fazer pontes. É legítima que ela queira ser uma voz ouvida, um player no processo de construção de sociedade. O que eu não acho legítimo é que a igreja pretenda se apropriar do Estado para impor a sua agenda.
Qual tem sido o impacto no meio evangélico da mistura entre religião e Estado?
O movimento evangélico hoje passa por um processo de ruptura entre dois grupos. Uma parte entende que a sua grande pauta na arena pública é moral, e a outra acredita que é social. A verdade é que o grande problema do Brasil não é moral, não é o beijo gay, e sim a desigualdade, a pobreza e a miséria. Uma parte da igreja é naturalmente racista, machista e homofóbica. Mas tem uma outra parte que se escandaliza com os índices elevadíssimos de feminicídio e mortes da população LGBTQIA+. Eu acho que cristianismo é conservador, mas o Evangelho é progressista.
O senhor chegou a ser expulso da Ordem dos Pastores Batistas de São Paulo por defender a atualização da Bíblia. Acha que há uma perseguição hoje dentro do segmento contra quem prega contra essa linha mais conservadora?
Eu recebi [essa punição] com tristeza, mas com naturalidade. Numa sociedade de exclusão, quem é contra a exclusão é excluído, então, eu lamento, mas não me espanto. Eu me referi à atualização especificamente a uma carta de Paulo (o apóstolo), que é datada historicamente e na qual ele não condenava a escravidão. O texto precisa ser lido com outras lentes, porque senão nós vamos continuar fazendo as mesmas afirmações que eram feitas lá no primeiro século, e nós não temos mais o mundo daquele século. A palavra de Deus é viva e poder ser atualizada.
