Não é mais surpresa para o brasileiro bem informado, preocupado com a qualidade de vida de suas cidades: Jaime Lerner está mais uma vez na mídia mundial, desta vez ele e Curitiba apareceram, na semana passada, dia 6, numa reportagem do jornal londrino The Guardian sobre a qualidade de vida urbana. Tudo por conta, novamente, da radical e diferente visão de vida que Lerner imprimiu à Capital do Paraná a partir do início dos anos 1970.
“Foi uma mudança de concepção de cidade: trabalho, mobilidade urbana, lazer… planejamos para que tudo acontecesse junto. Muitas cidades, no entanto, na América do Sul, separam as funções urbanas – por renda, por idade. Curitiba foi a primeira cidade que, desde suas primeiras decisões (de modernização) fez as coisas juntas”, diz Lerner ao jornal britânico, falando de seu escritório, na Fundação Jaime Lerner, na Rua Bom Jesus, que ocupa a mesma casa que ele concebeu, ao casar, nos anos 60, para viver com Fani Lerner. Uma casa já inovadora na época, sustentável, a começar pelo telhado em que utilizou material verde no telhado, com função térmica.
A publicação inglesa, depois de lembrar que a paradigmática Brasília, concepção de Lucio Costa e Niemeyer, virou uma espécie de “elefante branco”, lembra que Curitiba tornou-se um exemplo de planejamento urbano sustentável, sendo conhecida como “Capital Verde”, a “Mais verde cidade da Terra”; a “Mais inovadora cidade do mundo”, entre outros qualificativos.
“Hoje, 85% da população de Curitiba usam o BRT: Estamos transportando dois milhões de passageiros/dia, enquanto o subway de Londres transporta 3 milhões”, diz Lerner, com seu visível orgulho.
Assegura: “Começamos com o BRT em 1974; agora, 300 cidades ao redor do mundo estão a utilizar o mesmo sistema”.
A publicação registra a advertência que Lerner sempre faz quando fala da Curitiba em que fez sua obra prima:
“Curitiba não é um paraíso. Mas é um modelo para muitas cidades no mundo.
Por quê? Porque depois de depois de duas décadas, um pequeno grupo de profissionais nela fez importantes mudanças”.
OS IMIGRANTES

The Guardian lembra: “Quando uma onda de imigrantes europeus aportou no Sul do Brasil, Curitiba, a adormecida de cidade foi uma óbvia atração.
Os alemães chegaram em 1830, poloneses e italianos em 1870, e ucranianos duas décadas depois. Cada grupo ocupou uma área da cidade, desenvolvendo suas próprias industrias locais e começando a povoar a área central com igrejas, lojas e restaurantes. E entre 1940 a 1960, a população da cidade mais que dobrou – de 140 mil pessoas para 360 mil residentes. Curitiba foi-se tornando uma arquetípica cidade-média brasileira. Favelas cresceram ao redor das suas periferias; carros tomaram conta do centro.
“Mas, como era usual naqueles dias, de 1965 a 1970, nada aconteceu”, diz Jonas Rabinovitch, um assessor da ONU, e ex-urbanista do IPPUC, a quem conheci em Curitiba, amigo e ex-assessor de Lerner.
“Se você visitar Curitiba, observará que a arquitetura particular é normal. Alguns edifícios são terríveis, outros são bons. Mas quando olha para os parques, a arquitetura é grande, porque é uma arquitetura silenciosa.”
Rabinovitch, ouvido pelo The Guardian sobre Curitiba, faz justiça a Ivo Arzua, que por primeiro tentou dotar a cidade de um novo plano diretor, até promovendo discussões com a sociedade, mas as coisas só foram para a frente, de fato, a partir dos 1970, quando Lerner foi escolhido prefeito, no período do governo militar, embora sem ter ele – qualquer ligação, até então, com partidos políticos.
“Se eles tivessem vindo 10 ou 15 anos depois, a grande mudança de Lerner e seus grupo de urbanistas e arquitetos, seria então muito tarde para a cidade”, opina Rabinovitch.
FATO CONSUMADO

A mudança aconteceu definitivamente com a escolha de Jaime Lerner para prefeito, “quando finalmente o plano de mudanças urbanas transformou-se em realidade”, diz Jonas.
A narrativa do jornal inglês é preciosa para o registro dessa grande revolução urbana propiciada por Lerner e seu grupo de jovens arquitetos.
Lembra, com ênfase, a transformação da Rua XV de Novembro, em suas primeiras quadras – até a Rua Presidente Faria -, num espaço destinado exclusivamente a pedestre, uma revolução, inovação naqueles dias. E que aconteceu praticamente na “calada da noite”, num final de semana, com vistas a impor-se como fato consumado à resistência dos lojistas, que a ela se opunham; e também para evitar a Judicialização da proposta, o que poderia comprometer a implantação da mudança, cujo espaço passou a ser conhecido como Rua das Flores.
Explica Rabinovitch ao The Guardian: “As pessoas estavam acostumadas a fazer compras usando carros, estacionando-os defronte às lojas. Depois de as compras feitas, retornavam aos carros. Mas isso significava que, quando as lojas fechavam, o centro da cidade de Curitiba, ‘morria’”.
EM 48 HORAS

Lerner falou a jornalistas do The Guardian, em seu escritório em Curitiba, fazendo uma oportuna rememoração daqueles dias de mudanças. No caso da Rua das Flores, disse: “Se tivéssemos sido objeto de demanda judicial sobre o fechamento da Rua XV, nunca teríamos feito a rua do primeiro calçadão”.
E recorda: “Assim, a terminamos em 72 horas – de sexta-feira à manhã de domingo. E então um dos comerciantes que havia assinado petição para a interrupção das obras, me disse: “Guarde esta petição como um souvenir, pois agora nós queremos a rua toda, toda a Rua XV como setor para pedestres…”
O jornal, ao citar que a filosofia de ação de Lerner, citou a própria palavras de JL: “Tínhamos que trabalhar rápido para evitar a própria burocracia, e para evitar nossa insegurança, porque às vezes nós começamos a pensar: ‘é uma boa ideia, mas não posso fazer acontecer’. Assim, a chave para acontecer em Curitiba – foi termos tido coragem para começar a agir”.
Lerner respondeu ao The Guardian sobre se a ação como a citada não teria sido uma decisão técnica sem a participação (comunitária) – ele respondeu, como responde sempre sobre o assunto: “Democracia não é consenso. Democracia é conflito bem gerenciado. Trata-se de gerenciar o conflito – algumas vezes para a minoria, algumas para a maioria. Mas tem de acontecer”…
VERDE CURITIBA

O jornal inglês vai a fundo nas inovações e grandes mudanças urbana de Lerner em Curitiba. Lembra, por exemplo, que Curitiba tinha apenas um parque, o Passeio Público, quando Lerner assumiu a Prefeitura nos anos 1970. Hoje ostenta 50 metros de área verde por pessoa, enquanto cidades como Buenos Aires, têm apenas quatro metros por habitante.
O verdadeiro laboratório de mudanças urbanas implantado por Lerner significou várias realidades. Uma delas, em 1974, a introdução de novo desenho das vias urbanas da Capital, com as vias expressas (rápidas) e as pistas exclusivas pata os ônibus expressos, os BRT. Que cruzam a cidade de Norte a Sul com poucas interrupções.
O jornal recorda que Lerner sempre foi advogado do transporte urbano de superfície e crítico dos projetos visando a implantar metrô da cidade, porque o ‘subway’ – diz sempre – “drena os recursos públicos” e rompe com a vida da cidade.
Recorda que uma das citações mais frequentes de Jaime Lerner, a propósito diz: “Se você quer criatividade, corte um zero do orçamento. Se procura sustentabilidade, corte dois zeros”.
Esse, então, novo esquema de transporte urbano, o BRT (expressos) – autêntica criação de Lerner- fez com que o sistema crescesse rapidamente, pois os ônibus se transformaram no mais barato sistema de transporte de massa.
Assinala o jornal, mais adiante: “Mas Lerner e sua equipe não estavam ainda satisfeitos. No final dos 1980, ele constatou que a entrada e saída dos passageiros nas estações dos ônibus estavam prejudicando o fluxo do transporte em cada estação. Assim, seguiram-se três inovações: um novo sistema de plataformas – nas futurísticas estações ‘tubo’, que se tornaram famosas a partir de Curitiba – foi implantada. Ele permite aos passageiros moverem-se das estações para dentro dos ônibus, sem o esforço; enormes ônibus (biarticulados), acrescentando capacidade extra para a frota; e um sistema de pré-pagamento”.
DOIS MILHÕES
Hoje, registra o jornal, 85% da população de Curitiba usam o BRT: “Estamos transportando dois milhões de passageiros/dia, enquanto o subway de Londres transporte 3 milhões”, diz Lerner, com seu visível orgulho, ainda segundo o The Guardian: “Começamos com o BRT em 1974; agora, 300 cidades ao redor do mundo estão a utilizar o mesmo sistema”.
Outros projetos de Lerner para Curitiba são citados como exemplares pelo jornal londrino. Um deles, o chamado “Câmbio Verde”, pelo qual as populações pobres da periferia trocam lixo por gêneros alimentícios. O projeto foi de Nicolau Kluppel, em 1989, um dos mais notáveis membros da equipe Lerner.
Hoje, diz ainda a publicação, como resultado do amplo programa implantado por Lerner (“O Lixo que não é Lixo”), 90% da população participariam do projeto de reciclagem do lixo.
Ao mesmo tempo que Lerner e sua equipe fizeram Curitiba diferenciada pelo tratamento e reciclagem do lixo – recorda o jornal -, foi agressiva a implantação de parques e praças, assim como o trabalho de proteção do principal e vital rio, o Iguaçu, que recebeu canalização de concreto.
SONHO COLETIVO
“Se você visitar Curitiba, observará que a arquitetura particular é normal. Alguns edifícios são terríveis, outros são bons. Mas quando olha para os parques, a arquitetura é grande, porque é uma arquitetura silenciosa”.
Como exemplo da eloquência desses parques de Curitiba, Lerner citou a presença de postes de madeiras, adquiridos de empresas distribuidoras de eletricidade, utilizados nas construções dentro deles. Três deles substituem um de concreto”.
“É como eu digo: quer ser criativo, corte os zeros…”, assinala Lerner.
“A política é o provimento do sonho coletivo”, completa Lerner sua ampla entrevista ao The Guardian”.
Lerner costuma dizer que Curitiba não é uma cidade de relojoeiros suíços. Nem tudo funciona exemplarmente. E tal como ele, seu ex-assessor Rabinovitch assegura ao jornal londrino que oito por cento da população da cidade vivem em favela, que as dificuldades econômico-financeiras de sua população são iguais às das demais cidades brasileiras.
Mas ressalva que a cidade, de tal forma assumiu as mudanças promovidas a partir de 1972, que hoje “mais ninguém conseguirá desfigurá-la”. Garante que as áreas históricas – como o Centro Histórico – continuarão preservadas, as ruas exclusivas para pedestres e as pistas exclusivas para os BRT, pois são conquistas definitivas da cidade. Assim como a presença dos pássaros que fazem moradas na imensa área verde que domina Curitiba.