CMC – Briga entre vizinhos. Dizer “não” a uma investida amorosa. Comportamento fora dos padrões aceitos socialmente. Má reputação de um parente. Vingança. No Brasil Colonial, essa era a fórmula mágica – com o perdão do trocadilho – para alguém ser denunciado por feitiçaria e poder ser condenado à morte, inclusive. Para deixar o enredo dos pecados capitais ainda mais tenso, só se a pessoa na mira dos inquisidores fosse mulher e, ainda por cima, negra, indígena, parda ou escravizada.
Em reportagem especial pelo Dia das Bruxas, ou Halloween, data celebrada nesta quinta-feira (31), o Nossa Memória, projeto da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), resgata a história de processos criminais contra mulheres acusadas de “malefícios diabólicos”, no século 18, em plena Inquisição. Naquela época, as câmaras municipais também eram responsáveis por investigar, julgar e prender os suspeitos de crimes.
Entre 1450 e 1750, aproximadamente 110 mil pessoas foram torturadas sob a acusação de bruxaria, em todo o mundo, sendo que de 40 mil a 60 mil delas foram mortas. A Inquisição foi criada, no século 13, para combater as heresias. Ou seja, o objetivo não era só identificar e julgar apenas os delitos de feitiçaria, mas também os cristãos-novos (judeus e muçulmanos recém-convertidos), os protestantes e os sodomitas, entre outros.
A Inquisição, no entanto, não foi a única responsável pela “caça às bruxas”. “A feitiçaria era um crime, uma heresia e um pecado, previstos nas Ordenações do Reino, no Regimento Inquisitorial e nas Constituições dos Arcebispados, em todo Império Português”, explica a doutora em História do Direito Danielle Regina Wobeto de Araujo, autora da tese “Um Cartório de Feiticeiras: Direito e Feitiçaria na Vila de Curitiba (1750-1777)”, em entrevista ao Nossa Memória.
Isto é, existia uma espécie de “força tarefa” para investigar e punir a feitiçaria. Danielle esclarece que a chamada justiça secular, exercida pelas câmaras municipais e ouvidores, em nome da Coroa portuguesa, era quem se debruçava sobre a feitiçaria enquanto um crime. O objetivo, nesse caso, era apurar os danos causados pelo delito.
À justiça eclesiástica, composta pelo papa, bispos e padres, “interessava o pecado relativos à feitiçaria, como a ira, a luxuria e a sodomia”. Já na justiça inquisitorial, os inquisidores buscavam combater “a heresia envolvida na feitiçaria, como o culto ao diabo ou a outros deuses, a exemplo de rituais indígenas e afro-descentes na América Portuguesa”. “Por fim, destaco que, até onde se sabe, a Inquisição não atuou no Sul do país“, reforça ela.
Em 2014, quando a pesquisa do doutorado de Danielle estava na metade, a matéria “A Câmara de Curitiba e os processos contra feitiçaria no século 18” contou, em primeira mão, as histórias de mulheres presas sob a acusação de serem feiticeiras. Agora, dez anos depois, uma nova reportagem revela informações e documentos inéditos. Além disso, os processos criminais serão debatidos no CMC Podcasts. O programa será publicado nesta quinta-feira (31), no YouTube.
Mais de 30 testemunhas acusam mulheres de feitiçaria
Dia 22 de fevereiro de 1751, Igreja Matriz da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. Pela primeira vez, a história de Cipriana Rodrigues Seixas, “parda forra”, moradora da freguesia de São José, seria marcada por dois “homens bons” de nome Manoel. Um deles, o vigário Manoel Domingues Leitão, foi quem celebrou o casamento entre a jovem e Antonio de Lima, “na forma do sagrado concílio tridentino”. O outro, o escrivão da Câmara Municipal, Manoel Borges de Sampaio, assinou como testemunha da união.
Em fevereiro de 1751, quando selaram o matrimônio, Cipriana e Antonio já eram pais do menino Francisco, nascido dia 18 de dezembro de 1749 e batizado, na capela de São José, como “bastardo”. Além disso, os registros paroquiais mostram que o casal teve, nos próximos anos, pelo menos mais duas crianças, Anna Maria e Manoel.
Em 7 de março de 1763, mais de uma década depois daquele domingo na Igreja Matriz, o destino de Cipriana voltaria a ser marcado por outros dois “Manoéis” – eram, novamente, “homens bons”, ou seja, a elite da Vila de Curitiba. Naquele dia, o juiz ordinário e presidente da Câmara de Curitiba, o capitão Manoel Gonçalves Sampaio, recebeu uma denúncia: havia feiticeiras à solta na freguesia de São José. O queixoso, Manoel Cunha Reis, reclamou que o crime se alastrava na região devido à falta de castigos e pediu a abertura de uma devassa.
Reis denunciou que sua esposa e as quatro irmãs, “que lhe pertencem”, sofriam de “malefícios diabólicos” praticados por feiticeiras. Ele alegou que as vítimas estavam esmorecidas, com um sono constante, e que “lançavam por cima e por baixo coisas estranhas à natureza humana, como são penas de aves, cascos e dentes de animais, pedaços de sapos, baratas, gafanhotos, e até mesmo um camaleão”.
Reis afirmou que nem mesmo um padre exorcista teria conseguido curar as mulheres. Como a aplicação da justiça ao povoado cabia à Câmara de Curitiba (a freguesia de São José só foi elevada à categoria de vila em 1853), o juiz Sampaio atendeu à queixa de Manoel Cunha Reis e instaurou a devassa para investigar o delito de feitiçaria.
Ao todo, a devassa ouviu 33 testemunhas, apenas 2 delas mulheres. As ocupações mais comuns citadas pelos homens ouvidos foram as de viver da mineração, de roças e de lavouras. Mas também havia alfaiates, marceneiros, carpinteiros, um sapateiro, e quem fizesse “carretos do caminho do porto” ou vivesse “debaixo da administração de sua mãe”.
Sem apresentar provas, 20 das testemunhas alegaram apenas “ouvir dizer” que as acusadas eram feiticeiras. A maior parte das acusações recaíram justamente sobre Cipriana, além de Januária, uma administrada de origem indígena. Também são citados outros nomes de supostos feiticeiros e de vítimas da feitiçaria, além da mulher e das irmãs do queixoso.