segunda-feira, 8 setembro, 2025
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Gramado: Para Vigo me Voy, Marcélia Cartaxo e 5 Tipos de Medo

Por Dinah Ribas Pinheiro – Quem foi este ano ao Festival de Cinema de Gramado (13 a 28 de agosto), matou as saudades de duas figuras icônicas do cinema brasileiro. Cacá Diegues (1944-2025) e Marcélia Cartaxo, atriz paraibana, várias vezes premiada. Diegues é o personagem central do documentário Para Vigo me Voy, finalizado logo após a sua morte em fevereiro de 2025, e selecionado para o Festival de Cannes três meses depois. Em Gramado ele recebeu menção honrosa como melhor longa metragem-documental. Dirigido por Lirio Ferreira e Karen Harley, o filme mostra um Cacá inteligente e articulado falando sobre cinema, política e um Brasil diverso retratado em quase todas as suas produções.

As entrevistas são intercaladas com trechos dos seus filmes e bandas-sonoras, compostas por artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. O Título do documentário foi extraído da composição do mesmo nome de autoria do cubano Ernesto Lecuona (1895 -1965) e quer dizer, em sentido figurado, o mesmo que Vou me embora pra Pasargada, cidade imaginária no poema  de Manoel Bandeira, onde os seres humanos encontrariam a felicidade. Vigo, uma das cidades mais encantadoras da Galícia tem um clima ameno, vista para o mar e uma vida tranqüila. A Cidade é perfeita para quem busca qualidade de vida na Espanha.

A filmografia de Cacá Diegues, grande parte contida no documentário, sempre gerou debates e mobilizou multidões à porta das salas de exibição. Em Cannes, na semana da Crítica de 1964, aconteceu a estréia de Cacá nos longas-metragens com a exibição de Ganga Zumbaprimeiro líder do Quilombo dos Palmares. Vinte anos depois, Diegues volta ao tema, em Quilomboretratando o romance de Zumbi (herdeiro político de Ganga Zumba) e Dandara, dois líderes revolucionários de Palmares. Em 1976, ele criou o seu maior êxito comercial, Xica da Silva, estrelado por Zezé Motta e José Wilker. Essa reconstituição de época valeu a Cacá os candangos (troféu concedido aos melhores classificados no Festival de Brasília) de melhor filme e melhor realização, provocando boas discussões sobre feminismo, racismo, e colonização.

Ainda no mais charmoso festival francês, Chuvas de Verão, feito em 1978, é pleno de lirismo quando o diretor expõe o encontro amoroso de dois sessentões, numa cena antológica, em que eles se entregam ao deleite de dançar ao ar livre, embaixo de uma insistente chuva de verão, numa tarde qualquer dos anos 1970, e se divertem como adolescentes.

Ainda na Cote D’Azur, em 1987, Diegues exibiu Um Trem para as Estrelas que discorre sobre a maratona angustiante de um músico que sai em busca da namorada, que desaparece, após um encontro amoroso. Em 1910, voltou mais uma vez para Cannes para exibir 5X Favela, Agora por nós Mesmos, realizado por ele e sua mulher Renata Magalhães. Trata-se de uma alegoria ao filme de 1962, com o mesmo nome, que narra a façanha dos funcionários da Pedreira de São Diogo, no Rio de Janeiro, ao se mobilizarem para impedir uma detonação capaz de destruir os barracos situados na favela construída no local. O filme tem cinco capítulos dirigidos por cinco cineastas diferentes. Miguel Borges, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá Diegues.

O jornalista e escritor Plínio Fraga discorre sobre a pretensa refilmagem de 2010. Um filme passado em favela no qual aguarda-se uma hora até que seja ouvido um tiro; um filme sobre favelados que são assaltados por playboys da zona sul do Rio; um filme em que um rico critica o pobre por querer tirar onda de fodido; um filme sobre favela em que a alegria e o lirismo sobrepõem-se, mas não escondem a violência; um filme sobre favela em que os moradores são vítimas, mas também responsáveis pela violência. 5 x Favela – Agora por Nós Mesmos é uma obra múltipla do nome à produção, fruto de trabalho coletivo de mais de duas centenas de moradores de favelas do Rio. É múltiplo porque escrito por oficinas de roteiro em comunidades carentes, mas principalmente por expor personagens a facetas variadas, na contramão do mercado, do senso comum e da divisão social estabelecida. Como filme múltiplo, é desigual, como a realidade que retrata. Contraposta a 5 x Favela, de 1962, obra do catequizador Centro Popular de Cultura. A versão 2010 pode ser enquadrada como revisão crítica do ideário esquerdista de usar a arte para conscientizar as massas”. 

O senso estético e político de Cacá não para por aí. Bye Bye Brasil, de 1979, é uma comédia estilo Road movie, que ao percorrer o Brasil de norte a sul é considerada por muitos como uma das mais importantes produções da década de 70. Em novembro de 2015, o filme entrou na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como um dos Cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Lançado nas telas em novembro de 2018, O Grande Circo Místico”seu penúltimo filme, foi baseado no poema de 47 versos contidos no livro “A Túnica Inconsútil escrito em1938, por Jorge de Lima. (1893-1953)

No filme Deus é Brasileiro (2013), baseado no conto O Santo que não acreditava em Deus, de João Ubaldo Ribeiro, Cacá concebe um Deus, cansado e desgostoso com os erros cometidos pela humanidade. Ele, então, resolve tirar umas férias, mas precisa encontrar alguém para ficar no seu lugar. Informado que o Brasil é um país religioso vem para cá à procura de um espírito do bem, que o substituaNas suas andanças pela terra brasilis, ele é acompanhado de Taoca (Wagner Moura) um barqueiro espertalhão e interesseiro que o conduz pelo Brasil ribeirinho, e de Madá (Paloma Duarte), uma mulher solitária e sem destino. Antonio Fagundes faz o papel do Deus desesperançoso,

No último trabalho do diretor, ainda sem lançamento previsto no país, ele dá sequência ao tema anterior em Deus Ainda é Brasileiro, com o mesmo Fagundes no papel do Supremo. Desta vez a divindade retorna à Terra depois de uma rebelião dos habitantes do Olimpo que decidem lançar um meteoro para exterminar todos os representantes do gênero humano. O cenário é de um  Brasil que vive uma fase turbulenta, dirigido por um homem da extrema direita enquanto o país mergulhado numa crise política e social se divide entre progressistas e reacionários. Deus, então enfrenta os conflitos combinando humor e drama. Os povos originários e as questões ambientais são presentes na trama. Cacá foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2019.

Marcélia Cartaxo, Suzana Amaral e Clarice Lispector

A Hora da Estrela', com Marcélia Cartaxo, celebra 40 anos
Marcélia Cartaxo no Festival de Gramado. Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

A ariz e diretora paraibana Marcélia Cartaxo foi a maior atração no Festival de Cinema de Gramado deste ano. Ela foi homenageada com o troféu Oscarito, uma honraria que todos os anos é concedida a um ator, atriz, diretor ou técnico do cinema brasileiro naquele certame. Aplaudida de pé por vários minutos no Palácio dos Festivais, Marcélia reverenciou comovida a realizadora Suzana Amaral (São Paulo 1932-2020) que a dirigiu no seu primeiro longa, A Hora da Estrela, de 1985, baseado no romance do mesmo nome de Clarice Lispector (Ucrânia 1920 – Rio de Janeiro 1977). Última obra escrita e a mais lida da escritora, é um dos livros mais traduzidos no exterior: inglês, francês, alemão e espanhol.  Trata-se da história de Macabéa, uma nordestina destituída de qualquer graça ou beleza, pobre, solitária e sem perspectiva na vida, que vai morar na cidade grande. A heroína trágica recebeu de sua autora um trecho do livro, que chega a doer nos ossos: Por causa de sua vida vazia, Macabéa era quase desprovida de alma.” Esta frase, junto com outras reflexões do narrador Rodrigo S.M., descreve a condição de vulnerabilidade e a falta de consciência de si, daquela mulher, que representa as milhares de moças espalhadas por cortiços que vivem alheias à sua própria exploração e sofrimento. No final da história, e do filme, a personagem central da Hora da Estrela, é atropelada e morre depois de sair da sala de uma cartomante.

Suzana, leitora contumaz de Clarice, se apropria conscientemente dessa obra literária e a transforma num filme de rara sensibilidade e beleza. Marcélia veste a personagem da mulher que representa o lado feminino do povo brasileiro que não conhece o namoro, a praia, o teatro, o shope e a balada. Clarice, Suzana e Marcélia parecem uma só mulher, que concentra o lado sem graça da vida. O filme, realizado em 1985, é considerado um clássico do cinema brasileiro, uma espécie de varinha condão tanto para Suzana como para Marcélia. As duas estrearam no Cinema no mesmo ano, no mesmo filme, considerado uma referência para a cultura brasileira. Grande vencedor do Festival de Brasília de 1985, recebeu prêmios em seis categorias, melhor filme, edição, fotografia, melhor atriz para Marcélia Cartaxo e melhor ator para José Dumont. A glória chegaria no ano seguinte, no Festival de Berlin, que considerou Cartaxo a melhor atriz naquela competição. Ela voltou para a casa com o urso de prata, um dos troféus mais cobiçados pelos atores e atrizes do mundo inteiro.

Marcélia Cartaxo brilhou com o mesmo talento em Pacarretede 2020, baseado em fatos reais. Exibido em plena pandemia, isso não impediu a chegada dos prêmios tanto para o diretor como para a protagonista no Festival de Gramado daquele ano. Primeiro longa do cearense Allan Deberton, já conhecido por diversos prêmios e pelas suas qualidades artísticas em diversos curtas, é colocado ao lado dos grandes no audiovisual brasileiro. Marcélia usa mais uma vez a sua invisível varinha de condão ao provocar na crítica e no público o mesmo encantamento de 30 anos atrás, quando foi aplaudida de pé no emblemático A Hora da Estrela. Mais uma vez ela é premiada no Festival de Gramado daquele ano junto com o diretor Deberton. Pacarrete/Cartaxo representa uma professora de dança aposentada que vive em Fortaleza e que ao passar por momentos difíceis, volta a morar em Russas, no interior para cuidar de sua irmã adoentada.

Para fugir da mesmice do seu novo cotidiano, Pacarrete monta na cidadezinha um espetáculo de dança concebido por ela, mas se decepciona com a falta de interesse do povo. A Praia do Fim do Mundo, trabalho mais recente protagonizado pela premiada atriz paraibana, foi feito em 2021 por Petrus Cariri e estreou no último dia 4 de setembro em todo o Brasil. Em Curitiba ele está sendo exibido no Cine Passeio. O filme narra o drama de duas mulheres, onde Cartaxo é a protagonista, que moram há muito tempo numa praia paradisíaca mas que em determinado momento precisam sair porque o mar está invadindo as areias e as casas. O filme já passou por 16 festivais brasileiros e internacionais, onde recebeu 23 prêmios, incluindo o de Melhor Filme da Crítica no 31° Cine Ceará – Festival ibero-americano de cinema. Marcélia Cartaxo fez muitos papéis de destaque na TV, em peças de teatro e no premiado filme Madame Satã (2002).

Cinco Tipos de Medo

Filme com Bella Campos e Xamã será gravado em Cuiabá

Cinco Tipos de Medo foi escolhido como melhor filme, no Festival de Gramado de 2025. Dirigido pelo mato-grossense Bruno Bini que também assina roteiro, e montagem, é a primeira vez que um filme daquele Estado disputa um prêmio há mais de meio século. A trama conta com cinco personagens que se cruzam no enredo. Murilo, o músico (João Vitor Silva), se apaixona e acaba se envolvendo com sua antiga enfermeira Marlene, representada pela global Bella Campos que por sua vez está num relacionamento abusivo com Sapinho, encarnado por Xamã, outro global, um traficante perigoso. Luciana (Barbara Colina) é a policial encarregada de prender o meliante, e o advogado (Rui Ricardo Diaz) é um transgressor da lei. O quinteto demonstra habilidade no intrincado roteiro de Bini.

Quem também saiu com destaque da competição foi Papagaios, de Douglas Soares. O longa também recebeu quatro estatuetas, entre elas a de melhor ator para Gero Camilo. Já , de Laís Melo, e A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo, também voltam para casa com alguns dos principais prêmios da noite. 

Melhor Filme: Cinco Tipos de Medo
Melhor Direção: Laís Melo, por Nó
Melhor Ator: Gero Camilo, por Papagaio
Melhor Atriz: Malu Galli, por Querido Mundo
Melhor Roteiro: Bruno Bini, por Cinco Tipos de Medo
Melhor Fotografia: Renata Corrêa, por Nó
Melhor Montagem: Bruno Bini, por Cinco Tipos de Medo
Melhor Trilha Musical: Alekos Vuskovic, por A Natureza das Coisas Invisíveis
Melhor Direção de Arte: Elsa Romero, por Papagaios
Melhor Atriz Coadjuvante: Aline Marta Maia, por A Natureza das Coisas Invisíveis
Melhor Ator Coadjuvante: Xamã, por Cinco Tipos de Medo
Melhor Desenho de Som: Bernardo Uzeda, Thiago Sobral e Damião Lopes, por Papagaios
Prêmio especial do Júri: A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo
Júri da Crítica: Nó, de Laís Melo
Júri Popular: Papagaios, de Douglas Soares

A competição contou com seis filmes ficcionais inéditos, que foram exibidos no Palácio dos Festivais a partir da curadoria assinada por Marcos Santuário, Caio Blat e Camila Morgado

*Dinah Ribas Pinheiro é jornalista e escritora, especialista em Jornalismo Cultural. Trabalhou por duas décadas na Assessoria de Imprensa da Fundação Cultural de Curitiba. Exerceu a mesma função na Escola do Teatro Bolshoi em Joinville. Assessora de Comunicação no BRDE e no espaço cultural do Palacete dos Leões. É autora dos livros “A Viagem de Efigênia Rolim” nas Asas do Peixe Voador e “Teatro de Bonecos Dadá-Memória e Resistência”.

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