Por Sandoval Matheus – Agência de Notícias do Festival de Curitiba
Antes de falecer, em agosto de 2022, Jô Soares estava às voltas com um problema: encontrar o ator que faria o inspetor Ralf naquele que viria a ser o seu último trabalho no teatro, a peça “Gaslight – Uma Relação Tóxica”. O espetáculo em cartaz na Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba teve duas sessões nos dias 5 e 6 de abril, no Guairão.
“Até achar quem faria o papel, ele não sossegou. Quando a gente bateu o martelo, ele partiu”, revelou o ator Giovani Tozi, idealizador do projeto, na manhã desta terça-feira, durante coletiva de imprensa no espaço do Festival que, não por acaso, leva o nome de Jô Soares.

O escolhido foi o ator Leandro Lima, que interpretou o personagem Levi na novela “Pantanal”, sucesso de público e crítica. “Eu não conheci o Jô, mas isso me deu uma força muito grande pra fazer o personagem, saber que tinha sido escolhido por ele. Só me restava fazer da melhor forma possível’.”
Bênçãos de Jô
Leandro não foi o único a receber as bênçãos de Jô, artista múltiplo e consagrado, com carreira brilhante na TV, na literatura, no cinema e no teatro. Antes de topar dirigir “Gaslight”, o gordo mais beijoqueiro do Brasil desafiou Giovani Tozi a descobrir uma atriz que pudesse dar conta de todas as nuances da personagem Bella, que na peça sofre nas mãos de um marido impaciente e pouco cordial.

“O Jô me disse: se você encontrar alguém capaz de fazer o que a Ingrid Bergman fez em ‘À Meia Luz’ [adaptação cinematográfica de “Gaslight”], eu embarco”, revelou Tozi. “Sugeri vários nomes, e ele sempre dizia: ‘não, essa não chega onde a gente precisa’. Quando liguei com o nome da Érica Montanheiro, ouvi do outro lado: ‘filho da mãe, agora vou ter que fazer a peça’”.
O espírito, a memória e a gana artística de Jô Soares pairam perceptivelmente sobre toda a equipe de “Gaslight”. O diretor começou a imprimir sua marca no trabalho já enquanto traduzia o texto, um arrasa-quarteirão da Broadway escrito originalmente em 1938. E continuou o processo de orientação dos atores durante os encontros que promovia em sua própria casa. “Quando ele partiu, a gente pensou: está tudo aqui, está pronto, agora é só fazer”, conta Érica.

Teia de aranha
Jô também é responsável por uma inovação no cenário da peça. Montada e remontada inúmeras vezes ao longo de décadas, a história de “Gaslight” quase sempre foi ambientada num casarão ou num gabinete. Na versão que agora chega a Curitiba, o pano de fundo é uma gigantesca teia de aranha, com 14 metros. “Ele tinha consciência de que quem está nesse tipo de relação tóxica, muitas vezes nem sabe que está, e por isso não consegue sair. É como estar preso numa teia”, explica Érica.

A figurinista Karen Brusttolin entrou no projeto aos 45 do segundo tempo, depois que Jô já tinha deixado o campo. “Eu conheci essa galera aqui no luto, num momento muito difícil, e pude ver a resiliência deles, a vontade de levar a coisa em frente. Eu achei muito lindo. Tem muito da energia vital de cada um nesse espetáculo”, observou ela, que teve só 20 dias pra compor o figurino e ainda nem conseguiu assistir ao resultado em cena. “Vou ver pela primeira vez aqui em Curitiba.” Mesmo assim, pelo trabalho Karen foi indicada ao Prêmio Shell de Melhor Figurino.
Em 2022, “gaslighting” foi eleita a palavra do ano pelo dicionário Merriam-Webster. O termo pode ser traduzido como “abuso psicológico, tortura mental”. “Às vezes, pode ser muito difícil você explicar pra uma pessoa que ela está em uma relação abusiva. A arte consegue fazer isso com muito mais facilidade”, notou a atriz Maria Joana, que também compõe o elenco.