quinta-feira, 1 maio, 2025
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Festival: Curitiba, 330 anos de invisibilidade

Peça “Real Curitiba” estreou com fortes emoções no Festival de Curitiba

 

Por Fabiano Rossi Júnior e Camilla Basten, alunos de Jornalismo na Universidade Positivo

A peça “Real Curitiba” estreou no Festival de Curitiba no último sábado (8), no Teatro Novelas Curitibanas, dentro do Fringe. A peça do gênero “teatro marginal” trouxe várias denúncias de injustiças sofridas pelo povo das periferias da capital paranaense, sejam praticadas pelo governo ou pelas forças de segurança, como a Polícia Militar (PM) ou a Guarda Municipal (GM).

Porém, a emoção não ficou apenas na estreia da apresentação. Vinte minutos antes do início dela, a atriz Mika foi vítima de um assalto junto à sua esposa e DJ da peça, Paola Spena, nos arredores do Novelas Curitibanas. Segundo o relato de Paola, três homens (um armado com uma faca) deram voz de assalto e levaram um celular, carteira, chave de carro e parte do figurino da peça. “Levaram um salto alto que era o sonho da Mika e ela ia usar na apresentação. Eu ainda nem paguei a primeira parcela do meu celular”, conta a DJ.

Ao saberem do ocorrido, os atores da encenação decidiram ir atrás dos suspeitos e ao identificar um deles, conseguiram recuperar a carteira de uma das vítimas. Mesmo com o choque causado pelo assalto, Mika seguiu em frente e, com o consolo da produção, terminou de se arrumar para a peça. Meia hora depois do ocorrido, a GM instalou um módulo móvel em frente ao teatro. Mesmo com o boletim de ocorrência feito, nenhuma das duas mulheres acreditava em reaver seus pertences.

Foto: Dayana Jacqueline

Trupe Periferia

Montada no estacionamento da casa, o público foi convidado a se sentar no chão, formando um círculo vazio no meio. O elenco (Mary Jane, Mika, Zago, Poeta Diva Ganjah, Elton Louis, Naju, Vitor Bini, Felipe PG e Handal) chegou pela parte de fora do terreno e anunciou o seu primeiro ato. Em meio às suas rimas, a “Trupe Periferia” criticava os mitos de que Curitiba não tem periferias, questionava como uma “Cidade Modelo” não dá a devida atenção ao povo que mora nelas, condenava falas e ações do último governo federal e seus aliados,  denunciava os abusos e injustiças que eles sofrem e criticava a conduta da PM e GM com os pretos e pobres.

A poucos metros, três guardas municipais assistiam ao grupo relembrar casos como o do estudante Caio Lemes, morto em abordagem da Guarda em março, de Suellen Rodrigues, vítima de feminicídio, morta na frente dos filhos pelo ex-marido e policial civil em 2022, o caso da travesti Natascha, assassinada em 2016 após um grupo ter ateado fogo em seu corpo e o da menina Rachel Genofre, estuprada e assassinada aos oito anos de idade, em 2008 e ficou como “caso sem solução” por 11 anos.

O segundo ato foi anunciado com participação de Serginho Smith, 15, e Liah Vitória, 10, os mais jovens do elenco, no centro do círculo. Junto com o restante do elenco, Serginho e Liah falaram sobre racismo e suas inspirações vindas de pessoas pretas, como Dandara dos Palmares e reivindicaram seus direitos, mais uma vez utilizando da rima e da poesia para prender a atenção dos espectadores, trazendo eles para mais perto, literalmente. O ato voltou a criticar as pessoas que falam que a cidade não tem periferia ou pobreza e a enorme amplitude social que vive em Curitiba.

Invocando as pessoas presentes, o terceiro e último ato se iniciou. Misturando ritmos como rap, com funk, samba, os batuques das religiões afro-brasileiras e dança, os integrantes performaram letras que expressavam o seu direito de não sofrer mais injustiças, ser quem são, sobre as suas vidas nos seus bairros, sobre sua arte, sobre querer viver.

Foto: Fabiano Rossi Junior

A pequena Liah Vitória dedicou sua música para todas as mães das periferias com o refrão “eu só sei que amo/de verdade eu amo/obrigado minha mãe” e mesmo com pouca idade, não se intimidou com tamanho público e fez a galera balançar com o seu ritmo. Um problema técnico apagou algumas luzes e caixas de som da peça enquanto Diva Ganjah apresentava o seu samba com rap, mas isso não foi o suficiente para interromper o espetáculo. Em sintonia, elenco e plateia puxaram o refrão da canção “a vida que eu levo é a vida que eu posso ter”, enquanto Handal afirmava “a tecnologia não vai impedir a nossa arte!”.

Ao final da peça, o público aplaudiu de pé a apresentação e protesto feitos pela Trupe Periferia. Os atores agradeceram a presença e participação dos espectadores, em uma exibição tão interativa. Ainda houve distribuição de adesivos com a logo da Trupe e pedido doações para ajudar o grupo a se manter.

Assalto “deu um gás”

Mika, atriz que foi assaltada pouco antes do início da montagem, contou que o misto de sentimentos funcionou como um combustível, “isso me deu um gás, sabe? Tinha acabado de acontecer tudo e me subiu o sangue. É justamente o que eu falo no texto (da peça). Fui na base do ódio”. 

O bom público presente no Novelas Curitibanas surpreendeu a artista: “nossa, muita gente! Nós fizemos alguns adesivos para distribuir para o pessoal, mas pelo jeito foi muito pouco. É um ‘bagulho louco’ ver isso no Festival de Curitiba, uma peça que fala sobre a marginalização trazer tantas pessoas, todo mundo fica ‘uau, incrível!’ é gratificante”. Fazendo gancho com o tema da apresentação com os 330 anos de fundação de Curitiba, comemorados no último dia 29, a jovem criada no bairro Pinheirinho disse que o seu presente ideal para a cidade seria “menos repressão policial e mais olhos na periferia, como mais obras para ajudar a vida da nossa galera”, deseja a rapper.

Foto: Dayana Jacqueline

No meio da plateia estava o artista de rua nômade Felipe Puxirum, natural de Turiaçu, Maranhão. Para ele, o “Real Curitiba” soube escancarar o racismo que existe na capital paranaense, “eles mostraram que Curitiba também tem racismo estrutural, racismo institucional e dissimulado. Quando eu entro em um teatro, que é um lugar historicamente dominado pela burguesia, e vejo vários jovens vindos da periferia, a maioria preta, com uma peça dessas, esclarecedora e didática, fico muito orgulhoso”, enaltece o artista.

Na opinião de Puxirum, a presença da Guarda Municipal deu ainda mais força à mensagem do coletivo, “eu acho que mobilizou emocionalmente as pessoas a refletirem diretamente sobre o assunto. Foi boa a presença deles aqui. Não é sempre que um artista tem a oportunidade de criticar uma autoridade na frente dela e eles souberam usar isso de forma sensacional “, analisa.

“Real Curitiba” chegou no Festival “chutando a porta” e mostrou os problemas e injustiças vividos diariamente pela população mais pobre e preta da cidade com uma mensagem alta e clara: arte, resistência e revolução, causando impacto e buscando consciência de classe em quem assiste.

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