Folha de S.Paulo – “O que acontecerá no dia em que os indianos tiverem a mesma proporção de carros por família do que os alemães?”, perguntou o então presidente uruguaio José “Pepe” Mujica em discurso na Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, em junho de 2012. Morto aos 89 anos nesta terça-feira (13), após meses de tratamento contra um câncer de esôfago, Mujica começou a se tornar uma figura política de alcance global justamente a partir dessa fala no Brasil.
Numa época em que a pauta verde não tinha tantos defensores como hoje, chamou a atenção seu pedido à humanidade para não se deixar seduzir pelo consumo, por contaminar o ambiente e criar uma necessidade extra nas pessoas de terem “o carro mais novo, o celular mais novo, o rádio mais novo”.
O líder uruguaio, que governou de 2010 a 2015, tornava-se o primeiro da esquerdista “onda rosa” da América Latina a pôr a temática conservacionista entre as prioridades da agenda, algo raro entre seus pares. Nomes como Luiz Inácio Lula da Silva e o venezuelano Hugo Chávez só foram incorporando essa bandeira mais tarde, ainda de forma tímida.
Trajetória de Mujica
José Alberto “Pepe” Mujica Cordano, que faria 90 anos no próximo dia 20, nunca deixou de cultivar seu estilo de vida simples, mesmo já com projeção internacional. Veio de uma família de pequenos proprietários agrícolas nos arredores de Montevidéu. Quando presidente, recusou-se a morar na bela residência oficial, o palacete Suárez y Reyes. Preferiu continuar em seu sítio, em Rincón del Cerro, onde gostava de cuidar da terra, dirigindo trator até o fim da vida. Nas vezes em que precisava ir à capital, usava seu indefectível Fusca azul, no qual Lula pegou uma carona durante visita em 2023.
Durante a Presidência, dava trabalho a seus seguranças por ignorar os protocolos. Era comum vê-lo saindo para passear sem escolta para comer churrasco ou tomar um sorvete com sua mulher, Lucía Topolansky, 80, em restaurantes baratos. Doava dois terços de seu salário a um projeto de moradias populares.
A formalidade do cargo o incomodava. “O grande problema para mim é usar paletó. Quando o faço, geralmente em compromissos internacionais, é sem gravata”, contou certa vez à Folha. Em casa, o vestuário comum era blusa e calça de moletom, não raro sujos de barro. Andava quase sempre acompanhado de Manuela, uma cadela de três patas que morreu em 2018 e o acompanhou por mais de 20 anos —fotos dela podiam ser vistas nas paredes da chácara.
A militância política começou como estudante, quando passou a integrar a juventude que apoiava o partido Nacional (Blanco), tradicional agrupação nascida para defender os direitos do campo. Jamais foi uma sigla de esquerda, mas continha, como até hoje, uma corrente progressista.
Com os anos, Mujica deixou de se identificar com a bandeira do partido e foi construindo seu perfil de esquerda, por meio de leituras marxistas e anarquistas. Nos anos 1960, uniu-se ao Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros (MLN-T), uma das tantas guerrilhas sul-americanas criadas no esteio da Revolução Cubana de 1959.
Os Tupamaros reuniam socialistas, maoístas, anarquistas e comunistas. Surgiram como um grupo de resistência, mas ainda durante o período democrático. Mujica e os outros guerrilheiros que se projetaram na política fizeram uma espécie de pacto de silêncio sobre o período, mas biógrafos confirmam a participação dele em assaltos, por exemplo, para financiar o movimento. Ele também teria estado presente quando os Tupamaros tomaram a cidade de Pando, em 1969, e enfrentaram a tiros as forças de segurança. Não há relatos de que tenha se envolvido em sequestros ou assassinatos.