Domingos Pellegrini, o escritor paranaense que está no rol dos grandes da literatura brasileira de hoje, tem opiniões seguras sobre a censura a biografias.
Ele mesmo viu-se limitado quando quis biografar, por exemplo, seu amigo Paulo Leminski.
Mas achou forma de contornar a censura, publicando um livro precioso, que está nas livrarias, “Minhas Lembranças de Leminski”.
Sobre a nova lei aprovada pela Câmara, que garante a que se escrevam biografias sem censura, ele falou à coluna. Segue a entrevista:
Fim do nicho
A Câmara dos Deputados aprovou na semana passada uma lei, nova fronteira para o direito de se publicar biografias. O que você acha do texto?
– A nova lei impede o que estava se tornando uma censura prévia e um nicho para privilégios, e que afrontava a liberdade de expressão que é cláusula pétrea da Constituição. A chamada emenda Caiado, que no entanto permite que biografado ou herdeiros recorram a juizado de pequenas causas, pedindo reparação de erros, inverdades ou insultos, é muito prática, pois permite que isso possa ser corrigido em edições futuras, resguardando assim a honra dos atingidos mas, ao mesmo tempo, garantindo a circulação da edição distribuída, sem embargos que funcionavam como verdadeiras multas ou mesmo impedimento para as biografias. E é preciso ressaltar que esses pedidos não serão automaticamente deferidos, terão de passar por juiz que, ouvindo ambos os lados, poderá indeferir ou deferir no todo ou em partes os pedidos de supressões ou correções. A democracia avançou com liberdade e responsabilidade.
“Acordei assustado…”
O seu livro foi baseado em memórias de sua vivência com Leminski. Mas também recorreu a fontes documentais. Exponha como foi seu trabalho.
– Recebi o pedido do editor Samuel Ferrari Lago, da Editora Nossa Cultura, para uma biografia de Leminski, escolhido como biógrafo pelas herdeiras. Foi então que li a biografia “O Bandido Que Sabia Latim”, do Toninho Vaz, que achei muita densa de pesquisa, honesta e humana. Não vi assim necessidade de outra biografia e, além disso, Leminski me apareceu em sonho, a dizer “você não vai escrever uma biografia convencional de mim, vai?” Acordei tão assustado que fui para o computador no meio da madrugada. Já tinha escrito o primeiro capítulo, que refiz e acrescentei mais um, já com a ideia de um livro misturando lembranças, teoria da literatura, antropologia, arte da guerra e até clínica médica, passeando pelos vários ângulos daquela personalidade brilhantemente poliédrica. E novamente ele me apareceu em sonho, fazendo junto comigo uma sopa num caldeirão, sonho que corroborou a visão de um livro híbrido, misturando tudo aquilo. Daí pensei também em acrescentar o ingrediente ficção, dando voz a ele. Enviei então os dois primeiros capítulos às herdeiras, enquanto continuava o livro. Dois meses e vários pedidos de resposta depois, diante do silêncio delas, enviei e-mail a Alice dizendo que ou ela respondia ou eu colocaria o livro na internet.
Então ela respondeu no dia seguinte… fazendo reparos que achei descabidos, e coloquei o livro na internet, depois enviei para a Geração Editorial, que assumiu o risco de publicar mesmo com risco de embargo, por ver que seria uma atitude civilizatória.
As últimas censoras…
Diante da nova lei, que ainda deve ir ao Senado, você acha que os familiares de Leminski irão
continuar criando obstáculos, como os gerados a você e ao Toninho Vaz?
– A esta altura, suponho que as herdeiras já terão percebido que, se insistirem em objeções e restrições, ficarão conhecidas como as últimas censoras da República. Leminski não merece isso.
Gostaria que me descrevesse seus projetos em andamento.
– Aroldo, não falo de projetos em andamento, pois eles micham quando saem da boca.
Você acha que o Polaco tinha noção da importância que iria ganhar na vida literária do País?
– Leminski não só sabia como preparou seu pós-sucesso, cultivando imagens de mito, lenda de ídolo. Seus olhares nas fotos falam isso claramente.
Tenho orgulho de ter sido seu amigo, e de o ter defendido de ataques dos invejosos de plantão. E hoje lamento que, por egoísmo, deixei de vê-lo nos últimos anos, chocado por seu martírio ‘beat’ de se imolar daquele jeito. Eu deveria ter continuado a vê-lo, perdoando seus excessos porque, afinal, nele tudo era excessivo, o álcool, a ternura, a agudeza intelectual, o talento artístico. O Polaco tornou-se uma fonte de beleza. Casa com autenticidade. Por isso sempre digo que ele não morreu, ele continua vivo como só.