A data, para as novas e novíssimas gerações tem pouco significado, em geral.
O mesmo não ocorre, no entanto, com as gerações de seus pais e avós sobreviventes. Essas, na maioria, cultivam uma herança recebida dos seus ancestrais, fortemente marcada pela cultura ibérica de culto aos antepassados, de veneração dos chamados ‘campos santos’ e dos túmulos de seus entes queridos entrados na chamada Eternidade.
Claro que a devoção por Finados, no Brasil, é fichinha se comparada com a dos mexicanos ou dos peruanos, bolivianos e equatorianos.
Mas ela persiste, apesar da urbanização do país e da violenta secularização de costumes e crenças.
2 – O “SINAL” DA NACIONAL
Eu me lembro bem: criança, no começo dos 1950, ligadíssimo ao maior avanço tecnológico de comunicação de massa de então – o rádio – me guiava pela Rádio Nacional.
E Nacional do Rio de Janeiro como que dava o sinal, seguido por todas as emissoras de rádio do país: no Dia de Finados, só programação especial. O que quer dizer: tudo muito “sombrio”, para meus inquietos ouvidos de garoto já entrado nas aventuras da Família Marvel (e na escuta de Carmélia Alves e seu baião).
E isso queria dizer: nada de música secular popular (samba, baião, xote, chorinho…). No lugar deles entravam grandes concertos clássicos ou cantos corais, estes entoando temas religiosos. Ou que assim aparentavam ser, como “Aleluia”, de Haendel. Os Carinhos de Petrópolis eram muito solicitados, na data, pelas rádios.
3 – ÂNGELA MARIA: EXECEÇÃO
Havia as exceções que nós, as crianças, assimilávamos bem. Era quando a voz da “Sapoti”, Ângela Maria, surgia entoando a Ave Maria.
E ela, uma batista, cantava à Virgem esplendorosamente, sem preconceitos denominacionais. Como se pede de artistas com obra imorredoura.
Em minha casa, em que prevaleciam os costumes portugueses – da mesa à religião, da fala à beligerância luso-carinhosa -, não havia espaço para algum traço dos contidos alemães, os Haygert, uma mistura de luteranos e católicos.
4 – NA ANTEVÉSPERA
Minha mãe, uma descendente próxima de portugueses e espanhóis (Cáceres, Silva e Gomes), não fazia concessão: a gurizada tinha que ficar em silêncio. “Sem cantorias e sem gritarias”, decretava ela na antevéspera do Dia de Finados, data em que toda a casa se voltava para os mortos da família (quando morávamos no RS).
E mesmo longe dos restos mortais de ancestrais, minha mãe e meu pai partiam, já no Paraná, a partir de 1948, em piedosa peregrinação a um dos cemitérios da cidade em que morávamos. Levavam flores para colocá-las no cruzeiro das almas. E diziam preces, mas sem sombra de fanatismos, num culto civilizado, mas absolutamente da tradição ibérica.
A mesma tradição quer nos fazia cobrir os espelhos com grossas toalhas, quando iniciavam as trovoadas, em dias de tempestade. E que exigia que comêssemos durante toda a Semana Santa bacalhau nas refeições. Quem se recusasse a ingerir esse cardápio de conotações sacras (como fazia meu irmão Plauto Vinício), era punido. Com croques, pelo menos… E fica sempre a sugestão de que o rebelde estava cometendo falta grave, algum tipo de pecado.
5 – TEMPUS FUGIT
Daqueles Finados de minha infância ficaram associações entre a Morte e expressões latinas – o RIP e o Tempus Fugit. O “descansa em paz” e “o tempo corre (ou foge)”.
Eu e meus irmãos sempre demos graças, é certo, pelo fato de nossos pais não nos obrigarem a peregrinações pelos cemitérios. Nisso sempre foram democráticos.
6 – UM TESTEMUNHO
O melhor testemunho sobre essa herança do Finados (data ameaçada de extinção, quando for globalizada a cremação dos corpos), ouvi de Fernando Velloso, um dos melhores nomes da pintura paranaense, 80 anos. Ao me dizer que ficaria em Curitiba em Finados, foi explicando: “Tenho que cuidar dos túmulos da família, o do meu pai, dos meus avós e o de Emiliano Pernetta”.
7 – EMLIANO PERNETTA
Velloso está sozinho nessa tarefa, lamenta, pois os jovens não querem saber de homenagear mortos. E até por isso, preocupado com os restos mortais de seus antepassados queridos, confessou-me uma intenção: “Quero ser cremado. E que joguem minhas cinzas fora…”.
E quando ele se for, sabe, afora Maria Alice, sua companheira, ninguém “se interessará pelos meus ossos”, diz com objetivo lamento/constatação.
Entre os mortos ilustres da família de Fernando Pernetta Velloso, estão o poeta Emiliano Pernetta. E seu pai, Gaspar Velloso, que foi, no Senado, líder do Governo Kubitscheck.