Dinah Ribas Pinheiro* – Continuando a matéria especial sobre os 50 anos da Cinemateca de Curitiba (confira a parte 1), Valêncio Xavier deixou a Cinemateca em 1982 e Francisco Alves continuou o seu legado.
Geração Cinemateca
Berenice Mendes, diretora de A Classe Roceira, importante documento sobre o nascimento do MST do Paraná, Davi Carneiro e Saint Hilaire, dentre outros, foi uma das primeiras candidatas aos cursos oferecidos no espaço que incentivou inúmeras pessoas na arte do cinema.
“Pensar na Cinemateca de Curitiba é recordar o encontro com a arte. Foi ali que o mundo, para mim, ganhou novas perspectivas e horizontes. Entender que era possível criar, narrar, refletir e comunicar com imagens e sons, em nossa própria língua, a nossa própria história, foi profundamente transformador. Olhando em retrospecto, creio que a Cinemateca foi um portal para outra dimensão existencial. Uma linha do tempo que contemplava a liberdade acima de tudo, mas que também gerou em minha consciência a percepção do outro. Passei a ver a vida pela objetiva das câmeras, cuidando para que o foco estivesse correto e o enquadramento agradável, para que a síntese fosse obtida e para que o conjunto, montado, fosse bom e belo. O cinema me formou e me conformou. A juventude vital daquele grupo, os desafios, as conquistas, as lutas, derrotas, disputas e vitórias, tudo isso ficou pra trás, faz parte de um passado pioneiro. Porém, a doce lembrança de pertencimento e o sempre raro saber escrever com luz e sombras – os mais generosos tesouros que a Cinemateca nos entregou -, são inesquecíveis. Sou eterna e infinitamente grata”.
Berenice foi contemporânea, nas décadas de 1970, 1980 de outros jovens que deixaram suas marcas na cinematografia contemporânea do Paraná e do país. Peter Lorenzo, atualmente vive em Florianópolis, onde criou um curso de cinema que é referencial no sul do país. Peninha (José Roberto Braga Portella) foi técnico de som da maioria dos filmes feitos na época, além dos montadores Pedro Merege e Homero Carvalho, que mais tarde mudou para o Rio de Janeiro e criou a área de filmes da Fiocruz. Fernando Severo, nome em destaque daquele período, é hoje professor de Cinema da Faculdade de Artes do Paraná. Com O Mundo Perdido de Kozák, Severo foi premiado como o melhor filme no XXI Festival de Cinema de Brasília. Foi vencedor ainda de vários filmes nacionais.

Há quem diga que embora o endereço da Rua São Francisco, não fosse o mais apropriado para as suas funções, foi lá que os primeiros freqüentadores e usuários deixaram os seus corações e mentes. Willy Schumann, hoje um realizador reconhecido, teve sua entrada na sétima arte dentro daquelas paredes. ”A base cultural da minha geração, nos anos 1980, foram as mostras da Nouvelle Vague e do Cinema Novo. Lá fomos apresentados a Kurosawa, Godard e outros gênios, que nos deram as pistas para seguir adiante. Altenir Silva, Paulo Friebe, Elói Pires Ferreira, Nivaldo Lopes e Geraldo Pioli fazem parte da segunda turma (1980/1990) de futuros cineastas daquela década, e não pararam de produzir até os dias de hoje.
Esse grupo foi batizado como “A Turma do Balão Mágico” em referência a um coletivo musical infantil que ficou conhecido na televisão de 1983 a 1986. A matéria de página inteira, escrita pela jornalista Rosirene Gemael (1950-2011), editora de Cultura do Jornal paranaense Correio de Notícias, ao relatar sobre as iniciativas cinematográficas da trupe, exibiu a manchete da matéria com letras em caixa alta: Com Vocês, a Turma do Balão Mágico. Essa chamada, num dos mais importantes diários da época, chamou a atenção dos curitibanos. Segundo Schumann, o coletivo não tinha a intenção de se comparar aos músicos mirins da TV.
“Com o balão, o que nós realmente queríamos era alçar vôo. A maioria dos filmes que realizamos foi em parceria uns com os outros. Quando precisávamos de fotógrafo, produtor, montador, roteirista recorríamos aos próprios colegas” conclui. Dessa forma, o clube reforçava os laços profissionais e de amizade. Willy tem um portfólio de filmes realizado sozinho ou em parceria com seu irmão Werner que mora em Londres há 20 anos. Só para dar um exemplo: o filme Sol na Neblina, de 2009, produzido e dirigido pelos irmãos, foi selecionado para o programa Cine in Construcción, no Festival de Cinema de San Sebástian, na Espanha. Os Schuman, segundo Willy, “estão com alguns longas terminados, só faltando a finalização”.

Geraldo Pioli, formado em filosofia, diretor e roteirista, ficou conhecido pela parceria, junto com Altenir Silva, do documentário Belarmino e Gabriela de 2007, sobre os músicos paranaense do mesmo nome, que fizeram sucesso no Brasil de 1940 a 1970. A dupla musical ficou famosa com a música As Mocinhas da Cidade gravada em 1959. Geraldo dirigiu ainda A Aldeia e o documentário TV Educativa do Paraná, a propósito do centenário do nascimento do Rádio no Brasil. Funcionário concursado da Fundação Cultural, desde 1986, passou por várias funções na Cinemateca tanto na sede da Rua São Francisco como no prédio atual. Apaixonado por cinema, Pioli relata que nos anos 1960, em Ribeirão Claro, sua cidade natal, ele e um amigo, “moleque e pobre como eu” caíram nas graças de seu José Chamas, dono do Cinema Brasil, único da Cidade, e conseguiam entrar de graça nas matinadas de domingo.” Ninguém consegue imaginar a felicidade minha e do meu amigo quando nos víamos sentados numa das cadeiras do cinema para assistir o filme daquele dia”, relata Pioli.
“Quando cheguei em Curitiba no final dos anos 1970, meu interesse pelo cinema só cresceu. Conheci todas as salas de exibição da Cidade, inclusive o local onde eu iria assentar minha carreira profissional. Era um espaço diferente, com cadeiras de madeira, onde a programação diferenciada e os preços quase simbólicos me atraíram ainda mais, e onde fiz muitos amigos Em março de 1986, fui aprovado no Concurso realizado pela Prefeitura, para a função de programador artístico cultural da Cinemateca. Francisco Alves dos Santos era o coordenador. Cineasta, escritor, grande conhecedor e crítico de cinema, dos bons, texto apurado. Comecei aprendendo com Francisco e o ajudando na programação e na administração dos cinemas (Groff, Ritz e Luz, na Rua XV de Novembro, Guarani, no Portão e a própria Cinemateca). Lembro que as distribuidoras tentavam a todo custo nos empurrar filmes que nada tinham a ver com nossa linha de programação, já que o nosso objetivo era exibir filmes de qualidade mas que tivessem conteúdos voltados para a arte, o pensamento e a crítica social. Outra briga nossa era com os outros exibidores da Cidade que nos recriminavam por mantermos os preços populares, fazendo concorrência com os valores mais altos dos ingressos, com interesse comercial”.

Já na sede própria, Geraldo coordenou os cursos práticos de Cinema. “Eram três por ano, cada um durava quatro meses com lições teóricas e práticas. As aulas gratuitas atraiam de 400 a 500 candidatos para cada período, desse total precisávamos selecionar 30 em cada turma. A teoria estava a cargo de professores convidados e abrangia História e Teoria do Cinema, Linguagem, Montagem, Fotografia/Câmera, Roteiro, Produção e Som. A prática tinha início com o desenvolvimento de um roteiro cujo tema era decidido entre os membros do grupo. Na sequëncia os alunos eram separados em equipes que se dividiam entre filmagem, edição, imagem e som. Criamos a partir disso, um núcleo de produção digital permanente com alunos de diversos cursos que resultou em três filmes. Quando me aposentei em 2017, o saldo foi de 30 cursos e 30 filmes, muitos deles exibidos na TV”.
A mudança de rumo
Em 1982, aconteceram no país as primeiras eleições diretas para governadores dos Estados. Nas duas décadas anteriores estes eram designados pelos presidentes da república. No Paraná, foi eleito José Richa (1934-2003) que ao assumir o governo escolheu Maurício Fruet (1939-1998) para prefeito da capital. Três anos depois, se completou a abertura política no Brasil com as eleições diretas para prefeito. Em Curitiba, saiu vitorioso Roberto Requião, que permaneceu no cargo até 1988. Para a presidência da FCC, Fruet escolheu o advogado e intelectual Carlos Frederico Marés de Souza Filho, reconduzido ao cargo por Requião como Secretário de Cultura do município. Com ventos democráticos soprando na capital, Marés ampliou as políticas de Cultura nas diversas áreas.
O projeto Cinema para Todos, com exibição nos bairros foi um marco no período, seguido na gestão da jornalista Lúcia Camargo (1944-2020). Infelizmente, essa proposta não está mais em vigor. A gestão de Marés teve outro acontecimento importante, a abertura dos cinemas Luz e Ritz, na Rua XV de Novembro e o Cine Guarani no Centro Cultural do Portão, atualmente Museu Municipal de Arte (MUMA). Marés foi convidado pela coluna para falar sobre este projeto de expansão cultural.
Na semana que vem, não perca a parte final da matéria.
*Dinah Ribas Pinheiro é jornalista e escritora, especialista em Jornalismo Cultural. Trabalhou por duas décadas na Assessoria de Imprensa da Fundação Cultural de Curitiba. Exerceu a mesma função na Escola do Teatro Bolshoi em Joinville. Assessora de Comunicação no BRDE e no espaço cultural do Palacete dos Leões. É autora dos livros “A Viagem de Efigênia Rolim” nas Asas do Peixe Voador e “Teatro de Bonecos Dadá-Memória e Resistência”.