Por Zaga Mattos* – Esquecer como? Não tinha jeito. Virava e mexia a lembrança surgia. Camiseta colada ao corpo e a surrada calça Lee justa, bem ao estilo daqueles longínquos anos 60. Cabelos negros caindo, em desalinho, sobre os ombros e um sorriso largo emoldurando os dentes perfeitos. Ah… e os olhos… Ligeiros, vivazes, diziam tudo sem nada falar. Não, não dava para esquecer a imagem. Já não era mais a menina mirrada, miudinha. Talvez por isso ficasse marcada pelo apelido de Nitinha. Anita não era nome que combinasse com ela. Cresceu, ficou menina-moça espadaúda, marca de suas braçadas nas águas do rio que cortava sua cidade, mas permaneceu Nitinha. Morena linda que saia das águas como se fosse Iemanjá. Esquecê-la? Não havia jeito…
Aquela era a imagem que marcara sua vida. Aconteceu num fim de tarde. Chegara a casa e seus pais procuravam avivar sua memória:
– Lembra-se da Nitinha?
Sim, lembrava-se da Nitinha. Aquela menina magrinha de cabelos escorridos e buliçosa não poderia ser a mesma. O tempo trouxe mudanças, mas foi generoso demais com Nitinha. A timidez de sua adolescência desculpou-o pelo embaraço. Não sabia nem como cumprimentar as visitas. Ficou por ali, andando de uma sala para outra, correndo os olhos sem ter coragem para puxar conversa.
– Você agora vai estudar em Curitiba? – indagou dona Margarida. “Apareça lá em casa. Vá nos domingos almoçar conosco”.
Aquelas foram palavras mágicas. Soaram, ao seu gosto, como uma ordem, jamais como convite.
Não via a hora de se mudar para a nova vida. Se antes temia a cidade grande, assustava-se com os preparativos para o vestibular e fazia planos para a “república” que iria montar com seus amigos, agora caraminholavam pela sua cabeça pensamentos em que Nitinha era a personagem principal.
Foi morar numa daquelas pensões de estudantes, ali pelos lados da UPES, na Carlos Cavalcanti. Mas chegou cuidando mais do endereço de Nitinha do que de sua bagagem. E já no primeiro dia procurou a rua onde ela morava. Como um invasor foi planejando o ataque à cidadela onde estava a donzela de seus sonhos juvenis. Viu horário de ônibus, decorou o ponto onde deveria descer, preparou respostas para o questionário que viria, por certo, à mesa na hora do almoço. Estava tudo preparado. Era só aguardar o domingo.
A semana demorou a passar. Na segunda-feira, no final da tarde, já estava com seu plano delineado. Por duas ou três vezes fizera o roteiro, olhando atento pela janela do ônibus cada ponto de parada. Se ela, a mãe ou o pai embarcasse, saltava pela outra porta. Não podia marcar bobeira. Tinha no script que deveria fazer o tipo “até que não foi difícil achar o endereço”, com ar de quem não estava nem aí.
Na noite de sábado foi cedo para a cama. Nem quis saber de sair, acompanhando os amigos da “república”. Alegou dor de cabeça, indisposição estomacal… alguma coisa que não caiu bem… Talvez aquela costela de boi com batata no restaurante estudantil. Dormiu pensando como seria o dia seguinte.
Que falta fazia a sua mãe naquela manhã de domingo. Teve que dar uma desamassada na calça… O esforço serviu para lembrar de pedir aos pais uma calça de tergal e uma camisa “Volta ao Mundo”. Ficaria livre dessa mão-de-obra. Mas até lá o jeito era enfrentar a falta de prática com o ferro e cuidar para não queimar o que tinha.
Aproveitou o banho para fazer a barba, cantando “La barca”. Precisava saber o gosto musical da Nitinha. De uma coisa tinha certeza: se ela fosse fã do Jerry Adriani ou do Wanderley Cardoso, não iria ser fácil. Tomara que gostasse da bossa-nova. Do pensamento foi um pulo para assobiar o “Samba de uma Nota Só”.
Pronto. Estava tudo em ordem. Agora era torcer para o ônibus não atrasar e chegar a tempo para uma conversinha antes do almoço.
Lá estava ela no portão, aguardando-o. Do portão para a sala e ali a conversa com a família em volta. Não deu outra: o questionário todo veio à baila. Achou que se saiu bem, mas não teve tempo para ficar a sós com Nitinha. Apareceu até álbum de fotografias. Nas recordações, ele de calças curtas, cabelo no corte “bodinho” – uma variação daquele modelo que o Ronaldinho apareceu num dos jogos da Copa. Gargalhada geral. Mas, o que fazer… A Nitinha também não era a mesma dos dias de então… Ficou elas por elas, consolou-se.
Nos domingos seguintes, o mesmo ritual. O bate-papo da família antes do almoço, mais uma conversa na sobremesa e depois os programas da Jovem Guarda na televisão. Sem oportunidade para ir além, foi rareando a presença e tomou outro rumo, levando apenas a imagem de Nitinha. Anos depois, já casado, soube através de uma amiga que Nitinha era apaixonada por ele.
Os filhos cresceram, divorciou-se e numa manhã teve a notícia: na tarde daquele dia, missa de sétimo dia da irmã de Nitinha. Tudo veio à lembrança e programou-se para revê-la. Ao final da tarde, colocou o disco de Lucho Gatica na vitrola e curtiu um pouco de “La Barca”. Entrou no banheiro assobiando o “Samba de uma nota só”. Vestiu-se e correu para a igreja: iria rever seu sonho de juventude!
A missa já havia começado quando chegou. Olhou para todos e não viu Nitinha. Só havia umas senhoras, a maioria passada no peso e nos anos. Virou as costas e foi embora.
Resignado, pensou: é… a Nitinha nunca foi mesmo de missa!
*Zaga Mattos, ou Luiz Gonzaga de Mattos, é jornalista “curitibano-barriga verde” e escritor. Cronista do cotidiano e da boemia, também faz as tirinhas e charges da home do Mural do Paraná – desde os tempos do Blog do Aroldo Murá.