domingo, 14 setembro, 2025
HomeMemorialOpinião de Valor: Falar com os animais

Opinião de Valor: Falar com os animais


Animais conversam muito uns com os outros. Tom contou que aprendeu a gostar mais de osso

 

Roberto DaMatta* – Estadão
(Colaboração à Coluna enviada por Antonio Wouk)

“Mãe, consegui falar cachorrês e bati um longo papo com o Tom nesta manhã.”

“Como assim, Toninho? Não me diga que você aprendeu a falar gatês, aranhês e cachorrês”, respondeu Dona Laura tirando os olhos de sua costura, olhando com um sorriso cúmplice para a brincadeira do menino.

“Mãe, eu realmente falei com o Tom! Não é mentira nem brincadeira, é pura verdade. Aprendi o cachorrês e agora sei que posso aprender o gatês, porque os felinos e os caninos, como a senhora sabe, falam línguas e olham o mundo de modo diferente…”

“Toninho! Acabou a brincadeira, fale a verdade… Cachorros e gatos, aranhas, cavalos e vacas não falam. O dom da linguagem foi dado somente a nós, humanos. Aliás, como diz o seu tio, Roberto DaMatta, que é antropólogo cultural, é justamente a língua que chega de fora para dentro que nos faz gente.”

“Mãe, não é assim não! Animais conversam muito uns com os outros. O nosso cachorro Tom me contou que ele aprendeu a gostar mais de osso do que das comidas industriais insossas depois de uma conversa com o Tigre, o cachorrão de Dona Norma.”

“Eu realmente aprendi com o Tom o cachorrês: a língua dos cachorros. Ele é mais calmo do que a professora de Português e até mesmo do que a senhora.”

A mãe congelou, preocupada. O Toninho tinha que aprender a distinguir fantasia de realidade, senão jamais iria virar adulto.

Roberto Da Matta: 'A classe média foi afastada da política. Nos afastaram'  - Notícias - UOL Eleições 2018
Roberto DaMatta

“Onde você aprendeu essa asneira de que cães batem papo como nos filmes da Disney? Quem meteu essas maluquices na sua cabeça foi seu tio Roberto, não foi?”

“Foi não, mãe. Eu realmente aprendi com o Tom o cachorrês: a língua dos cachorros. Ele é mais calmo do que a professora de Português e até mesmo do que a senhora”, respondeu um Toninho provocativo. “A primeira lição que o Tom me ensinou”, complementou, “foi o ponto de vista”.

“Ponto de vista? Que diabo é esse ‘ponto de vista’?””Simples, mamãe. É ver o mundo saindo do seu lugar e tentando se colocar no lugar do outro.”

Dona Laura ficou aturdida. De fato, se o pai do Toninho tivesse se colocado no seu lugar, ela seria mais feliz e menos nervosa.

Naquela noite, a mãe sonhou com um estranho mundo. Um lugar no qual todos saíam dos seus pontos de vista e adotavam por algum tempo o ponto de vista dos outros. As diferenças continuavam, mas agora não mais separavam ou causavam brigas. Não era Babel, era o céu.

Pela manhã, Toninho transbordou de alegria quando Laura deu um alegre ‘bom dia’ para o Tom, que balançou o rabo, e deu um beijo no rosto do filho.

*Roberto DaMatta é antropólogo social, escritor e autor de ‘Fila e Democracia’

Leia Também

Leia Também