O interesse da UE em não contribuir com desmatamentos urbe et orbi é legítimo. Os meios propostos, discutíveis
Evaristo de Miranda – Revista Oeste
Em 13 de setembro passado, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução legal para regulamentar, aplicar sanções e até suspender a importação de produtos agropecuários originados em áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2019. A União Europeia (UE) quer enverdecer suas importações. A política do Farm to Fork e as regras para produtos zero desmatamento existem há anos e se inserem no chamado European Green Deal. O interesse da UE em não contribuir com desmatamentos urbe et orbi é legítimo. Os meios propostos, discutíveis.
A resolução aprovada envolve a política externa da UE e afeta os interesses de muitos países. Segundo seu relator luxemburguês, ela ainda dependerá da aprovação em cada um dos 27 Estados europeus e de muitos entendimentos. Lord Palmerston, primeiro-ministro inglês no século 19, assim definiu a política externa britânica: A Inglaterra não tem amigos eternos, nem inimigos perpétuos. A Inglaterra tem sim eternos e perpétuos interesses.
Para muitos, a resolução é unilateralista e viola as regras do comércio internacional e multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e os interesses de muitos países. O Parlamento Europeu, sem mandato de instância regulatória global, tenta criar regras de comércio internacional, a partir de um tema ambiental. Sua aplicação será contestada na OMC. O Brasil tem um histórico de vitórias na OMC contra o protecionismo agrícola europeu. Os contenciosos do açúcar e do frango salgado são exemplos. E poderá liderar alianças inéditas com países africanos, americanos e asiáticos, na defesa de interesses comuns.

Para outros, a resolução é neocolonialista. Como os países tropicais parecem incapazes de gerir suas florestas ou pelo menos do jeito desejado pelos europeus, então estes lhes imporão sua lei. Essa lei ignora as legislações ambientais nacionais, como as do rigoroso Código Florestal brasileiro. Nenhum país europeu tem uma legislação ambiental tão ampla e exigente. A longa história colonialista europeia talvez ajude a explicar tal rompante. Apesar de suas preocupações ambientais, não se veem países desenvolvidos como Canadá, EUA, China ou Japão propondo iniciativas desse calibre.
Já em julho, em carta dirigida à Comissão Europeia, 13 embaixadores da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa do Marfim, Equador, Gana, Guatemala, Honduras, Malásia, Nigéria, Paraguai e Peru criticaram o projeto da resolução, por violar tratados internacionais e levar ao crescimento da pobreza e da insegurança alimentar no mundo.
A resolução do Parlamento Europeu não assume, nem financia, os processos de monitoramento e verificação da adequação dos produtos agropecuários às suas exigências. Ela transfere esse ônus a produtores e empresas de importação. A eles cabe geolocalizar a origem dos produtos, criar sistemas de diligência prévia (due diligence) e fazer análises de risco da documentação apresentada, para julgar se são desmatamento zero e adequados às exigências europeias. O Cadastro Ambiental Rural, inexistente em outros países, é um sistema de due diligence e pode dar vantagem única a produtores brasileiros se pontes de entendimento forem construídas.
E, sendo assim, como a Bélgica procederá com a madeira do Zaire? Ali, apenas um dos concessionários belgas detém uma área florestal equivalente à metade da Bélgica. A França fechará suas madeireiras instaladas no Gabão e seus projetos dedicados à exploração florestal? A exploração madeireira de baixo impacto ambiental na Guiana Francesa está fora da resolução? Como a UE, destino de 67% do cacau da Costa do Marfim, maior produtor mundial, cuidará desse caso amargo? Quais sanções ao café e a outros produtos silvícolas do Vietnã, cujas exportações para a Europa passaram de US$ 3,7 bilhões em 2020 para US$ 5,59 bilhões em 2021, resultado de seu acordo de livre-comércio com a UE? E a borracha importada da África, ligada ao desmatamento? Qual será o destino do óleo de palma da Malásia e da Indonésia, objeto de tantas derrogações na legislação da UE? Na Europa, mesmo com avelãs e oliveiras, sem o óleo de palma, não há Nutella. Não há biocombustíveis, nem muitos itens da indústria agroalimentar.
A resolução é uma oportunidade para o Brasil e países tropicais ampliarem o diálogo com a UE, e não o conflito. Os ministérios da Agricultura, Relações Exteriores e Comércio & Indústria deverão trabalhar o tema com países europeus e de outros continentes. Organizações como a Confederação Nacional da Agricultura e a Associação Brasileira do Agronegócio já se pronunciaram. O Parlamento brasileiro talvez se manifestará aos Parlamentos nacionais da Europa. Dados precisam ser apresentados e discutidos de parte e d’outra, com paciência, persistência, um pouco de gingado e good will. O diálogo é uma arma de reconstrução maciça.
Os deputados europeus parecem olhar longe e não ver perto. Com suas crises alimentar, migratória, energética, inflacionária, climática e militar, a Europa amplia drasticamente o uso do carvão mineral; adia compromissos ambientais; reduz a proteção de suas florestas; sacrifica antigas florestas para produzir energia (lenha); desacelera sua transição energética e, ao mesmo tempo, incêndios florestais e emissões de gases batem recordes históricos. Se a intenção da resolução é “reduzir a participação da UE na crise climática”, nada como começar em casa.
Sobre a sinceridade de certas boas intenções resta a advertência de Millôr Fernandes: O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.