domingo, 22 dezembro, 2024
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“Tulipas Negras”: a editora, a confraria e o depoimento de “J”

Jamil Snege
Jamil Snege

O escritor Márcio Renato dos Santos, curitibano, 43, com obra literária ganhando repercussão Brasil afora, autor de “2,99”, recentemente lançado, tem indagado com frequência: “Por que os leitores da nova geração não perguntam sobre o original nome da editora Tulipas Negras?”

O nome foi considerado “muito interessante” por Márcio, desde quando ele lembrado por Jamil Snege da existência em Curitiba de uma confraria de homens que se vestiam de mulher, alguns deles confessadamente gays, no início dos anos 1950.

2 – CITADOS POR DALTON

O grupo, “amplamente no armário em tempos de absoluta condenação à diversidade sexual”, lembra ainda Márcio, auto intitulou-se “Tulipas Negras”, e se reunia com semanal frequência num edifício “histórico” da Avenida Vicente Machado/Praça Osorio, o Kwasinski.

Dalton Trevisan
Dalton Trevisan

– De passagem – recorda mais adiante Marcio Renato dos Santos -, os “Tulipas Negras” foram mencionados por Dalton Trevisan em seu livro “Em Busca de Curitiba”. E só. Outras referências? Nada em jornais da época.

3 – SOB SETE CHAVES

O tema “Tulipas Negras”, por envolver e ter entre seus associados alguns nomes veneráveis do chamado patriciado curitibano, foi, dos anos 1950 para cá, guardado a sete chaves.

– Sobrinhos, parentes, amigos, irmãos de antigos participantes dos “Tulipas Negras” criticaram até a escolha do nome para a editora de minha propriedade. Muitos procuraram amigos meus, fazendo algum tipo de restrição ao nome, “pois ele recorda episódios que devem ser sepultados”, como eles disseram, observa Márcio.

4 – CONTENTE COM RESULTADOS

A verdade é que Márcio não tem nenhum motivo para “sepultar” o nome da confraria que reunia homens de alternativa sexual – “afinal, não eram criminosos’.

E até porque, sem qualquer ligação com esse universo gay – “a não ser relações sociais muito boas e fraternas” -, ele está contente com os resultados que o marketing do nome vem propiciando ao projeto.

5 – TRINTA MIL EXEMPLARES

Garante Márcio:

– Veja só: comecei há menos de dois anos com a edição de folhetos com 30 contos, de 30 escritores. Foi um modelo novo de apresentar contos. E tivemos gente de alto coturno escrevendo, como Fábio Campana, Isabel Campana e o insuperável Dalton Trevisan. E se ressalte: foram 30 mil exemplares circulando, fazendo uma boa catequese da leitura” – explica Márcio Renato dos Santos.

O escritor é experiente também em fazer marketing: a publicação dos contos em micro tamanho, surgiu na edição das “Tulipas Negras” e criou impacto, tanto pela novidade em si, como pelo nome incomum.

Ele nunca antes se apresentou como dono da editora. Até chegava a sugerir, em sua política de despiste, que ela seria propriedade de “uma generosa velhinha portuguesa, que estava apostando em novos talentos paranaenses”.

Flor Tulipa Negra
Flor Tulipa Negra

6 – RARAS FLORES

– O porquê de Editora Tulipas Negras?

Talvez a mesma razão que levou o grupo de formais cavalheiros reunirem-se para as festas em que exibiam seus dotes gays, diz o escritor, para lembrar: “Tulipas negras são raridades entre as outras tulipas…”

Gente como o jornalista Márcio e qualquer um outro antenado com a evolução da sociedade, mesmo sem se envolver em apologias à diversidade sexual do ser humano, sabe que hoje não haveria motivação e justificativa para a existência de uma confraria ao estilo das “Tulipas Negras”.

7 – ENTREVISTA COM J, “EX-TULIPAS”

No entanto, dada a importância que a confraria assumiu no imaginário curitibano, a coluna – por indicação de um velho médico hoje residente em São Paulo -, procurou e ouviu o professor J…, que por anos lecionou no antigo Colégio Paranaense (depois Estadual do Paraná). Ele participou das “Tulipas”, e só falou o essencial e sob condição de anonimato – “nos meus quase 90 anos não me posso permitir a exposições que gerem fortes emoções, justifica”.

Antes de falar, pede à coluna: “Quero que me garanta que não serei procurado por outros jornalistas?”

Nada garanti. Garanti-lhe, apenas, que manterei seu nome no anonimato. E aí seguem as perguntas e as curtas respostas de J:

– O senhor foi um dos “Tulipas”?

– Sim.

– Por quê?

– Foi uma maneira de nos reunirmos, pessoas com interesses comuns…

– O senhor quer dizer interesses gays?

– Não conhecíamos a palavra, então. Éramos, no máximo, “entendidos”… Um ou dois do grupo poderiam ser livre-atiradores, gente disposta a tudo…

Mas éramos mesmo ‘entendidos’. E só.

– Quantos eram os “Tulipas”?

– Alguns apareciam semanalmente; outras. Menos frequentes. No todo, não mais que 15 homens, alguns deles casados e pais de família.

– Quais os trajes preferidos do grupo?

Carmen Miranda
Carmen Miranda

– A maioria vestia-se de Carmen Miranda, tudo muito caprichado. Vestidos caros. Houve uma tentativa de alguém fazer o estilo Virgínia Lane, a vedeta que estava na moda, até por ser apontada como uma das amantes de Getúlio.

– Pode citar nomes? Ou, pelo menos, a profissão de alguns deles?

– Só profissão: um, dono de antiquário, ainda vivo; outro, dono de cartório, que depois passou o negócio rendoso para ex-namorado (já morto também) de muitos anos; outro, médico de sobrenome alemão, formado em Berlim; um cronista social; um diretor de teatro de família tradicionalíssima; um empresário que depois morreu dirigindo cadeia de hotéis…; um arquiteto refinadíssimo, de família de ervateiros históricos…

– Podemos avançar, ir além…?

– Fim da entrevista. Passar bem.

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