quinta-feira, 26 dezembro, 2024
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Opinião de Valor: igrejas dentro das urnas

Aroldo Murá G.Haygert

Professores, médicos, cabeleireiros, manicures, comerciantes e comerciários, pugilistas, motoristas profissionais, bicheiros e cobradores, policiais, jornalistas, cabos eleitorais (até mesmo analfabetos), sindicatos, federações, associações, clubes de futebol e federações esportivas, indústrias e federações empresariais, prostitutas, calistas, motoqueiros… e tantas quantas categorias profissionais existam no país têm o direito de fazer lobby no Congresso, de propor projetos de lei – através de seus representantes – ou via emendas populares. Têm direito de influenciar na feitura de leis e na montagem de políticas públicas.

Eles podem sugerir propostas de toda ordem, algumas derrubando tradições consolidadas na vida nacional. São, enfim (e graças), cidadãos em pleno uso de seus direitos políticos, atuando em seus nomes ou das entidades que representam. Nada mais correto do que isso em uma verdadeira democracia. E é para isso que elegem seus deputados, senadores, vereadores, dirigentes do Executivo.

Mas, lamentavelmente, há exceções: são as fatias “não cidadãs”, para certos pregoeiros do Estado leigo. São as igrejas, os grupos religiosos, os eleitores praticantes de alguma crença ou simplesmente crentes no transcendental, que “não podem” tentar mudança nas leis do Brasil, nem podem lutar para que elas permaneçam como estão.

Esse quadro de exceção, de claro anátema, não é lei. Mas vai se alastrando na repetição de formadores de opinião com vistas a consolidar-se especialmente nas novas gerações.

Não trabalho com viseiras históricas: sou daqueles que enxergam certos males praticados contra o homem em “defesa” do que seria a “fé religiosa”, assunto de que se ocupou, com seu pedido de perdão, São João Paulo II, ao examinar, por exemplo, ações da Inquisição. Nem por isso acho que se deva eliminar Deus e igrejas da vida dos povos. Sou, igualmente, daqueles que colocam os erros das religiões numa conta corrente em que, sempre, o peso maior, ao fim, como mostra a história, vai ficando a favor das igrejas e expressões de fé.

Costumo tomar como exemplo da boa colheita da fé religiosa aquela que se encontra nos Estados Unidos, apesar dos exageros fundamentalistas de certas seitas de lá. A nação do Norte, ressalte-se, se coloca sob a proteção de Deus, na sua Constituição, e 80% dos americanos têm algum tipo de ligação com igrejas. A maior delas, lá, é a Católica, convivendo com centenas de igrejas protestantes de todos os quilates. E os católicos americanos defendem seus valores, como a preservação da vida, do feto ao túmulo, sem abortos e sem eutanásia. E sem pena de morte, é claro.

Nem por isso os Estados Unidos deixam de ser um Estado laico. Na verdade, as políticas de Estado têm sido, ao longo da trajetória desse povo, desde os “Pais Peregrinos”, marcadas pelo impulso da fé em realidades que vão além do visível. O Mayflower carregou consigo, da Inglaterra, uma herança de crenças cujas benesses os americanos colhem até hoje. Às vezes desfraldando, depois, bandeiras religiosas surpreendentes, como a do mormonismo, mas capaz de construir – como fez Brigham Young – uma civilização no deserto.

Aos que simplesmente se opõem a que crentes – católicos, evangélicos, mórmons, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas etc. – se manifestem e façam suas posições influenciarem a nação, via parlamento, vou esclarecendo: quem, como eu, se insurge contra esse patrulhamento religioso crescente não advoga o ressurgimento do regime do Padroado, pelo qual, no Brasil Colônia (e até o Império), padres, bispos e o dia a dia da Igreja eram mantidos pelo Tesouro. O Padroado está morto e sepultado, graças a Deus; estava matando a fé.

O que vou enxergando com clareza é a tentativa de se impor um relativismo pseudocientífico em busca de desvalorizar a herança religiosa. Mas essa é parte da nacionalidade, indivisível; nasceu com a nação no seu primeiro dia, com a missa de frei Henrique de Coimbra. Até por isso recomendo que esses iconoclastas mergulhem em estudos fundamentais realizados por gente como Riolando Azi, Faustino Teixeira, Antonio Gouvêa Mendonça, Cartaxo, Regina Novaes, Brandão, Mariano… para entender o fenômeno religioso brasileiro. Ele é muito maior e mais amplo e importante do que imaginam alguns intelectuais de plantão, muitos deles apologistas de um niilismo inexplicável. Mas denunciador de contradições dificilmente defensáveis.

(Publicado na edição de domingo, 28-9, na edição online da Gazeta do Povo/Opinião)

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