quinta-feira, 27 novembro, 2025
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O Bordel, as Polacas, e as Marias de Teca Sandrini

Por Dinah Ribas PinheiroTeca Sandrini escolheu o ano de 2025 para celebrar a arte e a vida. Em março ela lança Fogo no Bordel, seu livro de memórias. Em julho, no Museu Oscar Niemayer, sua exposição Eterno feminino, com 126 obras, foi uma das mais visitadas do ano. Os dois produtos mostram a mesma Teca, madura, verdadeira e humana. Um observador com olhar psicanalítico conclui que tanto o livro como a exposição falam da mesma pessoa. Um ser em constante crescimento intelectual, desbravando seu próprio caminho.

Escrito por Ricardo Freire, o volume com 400 páginas descreve a mulher com pedigree das famílias curitibanas, o pai jornalista, e a mãe da família Braga. Surge então a professora, a ativista cultural e a artista com 60 anos de história. O livro é tão fascinante que a gente lê numa tacada só, sem intervalo. Com apresentação do jornalista José Carlos Fernandes, a leitura prende o leitor desde os primeiros minutos. Fernandes, aluno da artista na Escola de Belas Artes do Paraná, na década de noventa, ficou seu amigo a ponto de falar sobre a mestra com a leveza de um especialista. Um dos parágrafos do texto revela o quanto Sandrini é interessante e versátil:

“No exercício da profissão de jornalista. Assimilei como método em sabe-se lá quantas pautas–perguntar à Teca o que ela sabia a respeito dos mais diversos assuntos, em especial sobre as famílias paranaenses coroadas. Nunca saí de mãos abanando. Impressiona a quantidade de informações – bem coloridas – que passam pela sua palheta. Não tinha erro – na fala dela sobre temas de Cultura e história da Cidade sempre há um fato satélite extraordinário, despercebido, capaz de tirar qualquer trama da banalidade. Pudera, são muitas Tecas – a guria da Bragalândia, a voluntária do presídio de Mulheres, a que expôs em Nova York, a que fazia parte da trupe do Centro de Criatividade do Parque São Lourenço, a ativista que não joga a toalha. Assim como o formidável neuropsiquiatra Oliver Saks, ela pode dizer que teve uma transa com a vida”.

Teca fez de tudo nesta vida, foi casada com Rômolo Sandrini, um dos mais importantes endocrinologistas do Brasil, com trabalhos publicados inclusive no exterior. Falecido em 2018, o médico que também foi professor de medicina na UFPR, transferiu sua experiência para diversas gerações de endócrino-pediatras. A artista teve seu batismo na pintura com o pintor e professor Guido Viaro, cujo museu em Curitiba, que leva o seu nome, além de guardar as obras do mestre, se transformou num espaço cultural de referência na cidade. Fez o curso superior de pintura na Escola de Música e Belas artes do Paraná e Didática em Desenho, na PUCPR. A partir daí o mundo todo foi o seu limite. Para variar, trabalhou como auxiliar de bibliotecária na Biblioteca Pública do Paraná. Morou um ano em Buenos Aires onde freqüentou os ateliês do escultor Juan Carlos Labourdette e da ceramista Gladys C. de Migliorini.

Anos depois, morando nos Estados Unidos, cursou pintura com Dan Dudrow e monotipia com Sam Peters no Maryland Institute College of Arte em Baltimore. Na mesma cidade, realiza as exposições From Brazil: Estela Sandrini, na Katzenstein Gallery e Estela Sandrini: Paintings and Drawings, na Art Gallery of Brazilian American Cultural Institute, em Washington. Embora tenha escolhido a Pintura e o Desenho para se expressar artisticamente, experimentou outras técnicas como a monotipia, a gravura, a escultura, a cerâmica e, inclusive o artesanato, quando criou com outros artesãos a Feira do Lago da Ordem no inicio dos anos setenta. Ganhou muitos prêmios, participou de dezenas de exposições no Brasil e no exterior, fez inúmeras viagens, e também foi mãe de Giovana e Juliano. A família se completou com a chegada dos netos Nicole, Conrado e Manu. Aberta a novos conhecimentos, fez um curso de especialização em Antropologia e participou do curso de extensão universitária Existencialismo e Marxismo, na Universidade Federal do Paraná.

Teca Sandrini: ícone das artes plásticas

Foi diretora do Museu Oscar Niemeyer de 2011 a 2017, onde desenvolveu um expressivo trabalho de formação de público. Seu esforço para a abertura do MON a novos visitantes se reflete hoje no número cada vez maior de crianças e adultos que freqüentam a instituição. Quando ela assumiu, artistas paranaenses foram pedir que ela desse prioridade aos valores do Estado. E não era nenhum favor, já que a prata da casa era da maior qualidade. No calendário das exposições, alem de Goya (Francisco José de Goya) mais importante artista espanhol do final do século XVIII e do francês Edgard Dias (1834 -1917), a nova diretora deu destaque às obras de Ida Hannemannde Campos, Violeta Franco e Dorothea Vindimam, dentre outros, além de uma retrospectiva do poeta Paulo Leminski organizada pelas filhas Áurea e Estrela, que depois percorreu o Brasil, a convite de outras instituições.

Dona de uma profunda generosidade intelectual, abriu espaço para Efigênia Rolim, artista popular mineira radicada em Curitiba, conhecida por suas esculturas em papel de bala, trajes, animais e outros materiais reaproveitados. O livro “A Viagem de Efigênia Rolim nas Asas do Peixe Voador”, de autoria da jornalista Dinah Ribas Pinheiro, foi lançado na Sala das Esculturas num lindo sábado de sol, com a presença do coral de MPB da Universidade Federal do Paraná que acabara de gravar Conta Gotas, composição da homenageada. Parte do acervo da artista teve sua estréia nas paredes daquela casa, na mesma ocasião, causando imensa surpresa entre os freqüentadores. Era a primeira vez que Efigênia pisava naquele espaço. Era a primeira vez que o museu, considerado um dos mais importantes da América Latina, abria as suas portas para uma artista do povo.

Na desmontagem da exposição, tempos depois, Teca comunicou a ela que o Museu estava adquirindo A Rainha do Planeta, sua obra mais emblemática. Trata-se da transformação de um manequim em desuso numa instalação de rara beleza. A Rainha, vestida com traje apropriado à sua grandeza, naturalmente confeccionado pela autora, é todo enfeitado com flores, borboletas, laços de papel. A coroa real e a cauda de renda completam a sua realeza. Na entrega oficial da obra, Efigênia se despediu de sua criação, ajoelhada e agradecida, ela tinha alcançado a sua transcedência. Sua pupila iria permanecer, com honra e circunstância, junto às demais obras de artistas nacionais e internacionais presentes no acervo. Considerada pela sua autora como um talismã, a Rainha abriu para ela novos caminhos. Após ter recebido uma sala especial na Bienal de Curitiba em 2013, dez anos depois Efigênia, junto com Helio Leites foram os personagens da exposição Os Significadores do Insignificante, mais uma proposição de Teca Sandrini.

Efigênia Rolim e Dinah Ribas Pinheiro

Teca Feminista

Parte do talento de Teca Sandrini foi compartilhado com outras mulheres. Seu trabalho voluntário como professora de arte das detentas da Penitenciária feminina de Piraquara, a convite da diretora Eny Carbonar, entusiasta do projeto de socialização, mostra a sua despretensão como artista e como mulher, ao dividir com elas os seus saberes no desenho e no bordado. “No início as mulheres bordavam tecidos com desenhos de artistas paranaenses, numa segunda fase elas mesmas desenhavam o tema que mais lhes agradava. Foram realizadas algumas exposições com esses bordados, e ela passaram a ganhar dinheiro com as vendas, o que aumentava a auto-estima do grupo” relata Sandrini.

Com Letícia Marquez e Maria Cheung, participou da mostra Três Mulheres, Três Poéticas no Muma. No Museu Alfredo Andersen integrou a coletiva Universo Feminino. Na retrospectiva de toda a sua obra desde os anos sessenta, até as mais recentes, que permaneceu no MON, de julho a setembro deste ano de 2025, e foi batizada de O Eterno Feminino é perceptível o seu olhar que se revela em pura sensibilidade. Maria José Justino, crítica de arte e curadora da recente exposição reflete com profundidade sobre um dos recortes da mostra.

“Na fase das POLACAS, encontramos a gorda e jovem senhora reclusa no interior de um quadrado (casamento?) e cercada de tralhas por todos os lados, signos do cotidiano doméstico. Oscilando entre o ingênuo e o mordaz, são mulheres mergulhadas nas tarefas, nas tralhas – potes, panelas, mesas, gavetas –, numa espécie de loucura organizada. Nem heroínas nem vítimas; antes, simpáticas jovens sonhadoras ou rechonchudas donas de casa sempre atoladas nos afazeres domésticos, enleadas nas gravatas dos maridos, nas solicitações do trabalho e da família. Mesmo em cenas entre homem e mulher, a relação às vezes é amorosa, outras, violenta. Os abraços não são ternos, se assemelhando mais a uma tensão”.

E o que dizer das Marias? das Dores, do Socorro, Auxiliadora, num total de dezoito, todas com expressão sofrida. Isso porque elas foram concebidas durante a convalescença de uma cirurgia no fêmur, após uma queda. “Naquela ocasião eu sentia tanta dor que só podia passar para elas uma fisionomia triste” complementa. Sendo assim, esta é uma das fases mais realistas da artista Teca Sandrini.

Ricardo, autor do livro Fogo no Bordel, reforça a mesma Teca na sua inquietude entre dar conta da sua arte e das lides domésticas. A exposição individual de Desenhos. realizada na década de oitenta, na galeria Caixa de Criação, revela essa busca pela emancipação. “Em cozinhas bem organizadas ou reviradas, mulheres sempre estáticas começaram, de repente, a se tornar mais espaçosas, reclamando cada vez mais por atenção. Depois de passar pelo grafite e se disciplinar com bico de pena, Teca adotou o pastel oleoso.

A liberdade que ela sentiu no momento se refletiu então nas mulheres, que ficaram leves e alçaram vôo. Cabeça de pássaro elas já tinham. Além desses desenhos em grande escala, ela fez gravuras minúsculas mostrando ainda a cozinha salas ou quartos de casa aconchegantes. E sempre havia uma ou duas donas de casa orquestrando toda ordem e desordem”. Quando é convidada e explicar sobre as “suas” mulheres com expressivos bicos de pássaros na cabeça ela responde. Eu tinha criado mulheres “bonitinhas e sorridentes”, depois vi que elas precisavam ter algo para se defenderem. Foi a solução que encontrei para não deixá-las tão vulneráveis”

O Mel da Ilha

Ilha do Mel

Teca estava na Ilha do Mel com a filha Giovana e algumas amigas, quando chegou Ângela Gonçalves, com um caderno na mão, solicitando ajuda para facilitar a entrada em algum edital com o objetivo de imprimir um livro de memória. “Pedi que ela lesse algo para mim, o que ela fez com muita emoção. Ficamos todas em silêncio, impactadas com o misto de crueza e romantismo que se desprendia daquelas páginas. Considerei que aquilo era uma preciosidade que estava em minhas mãos, e que essa preciosidade precisava ser mostrada a outras pessoas”. Enquanto isso, Etel Frota, letrista, dramaturga e escritora paranaense moradora da Ilha, e que também havia tomado conhecimento da obra, incentivou Ângela a continuar a escrever e a concluir o livro, que foi, afinal, inscrito no edital da lei Aldir Blanc, da prefeitura de Paranaguá, e aprovado!”, resume Teca.

“Procuramos manter a narrativa o mais próximo possível da linguagem autoral, respeitando a ortografia e concordâncias. A diagramação e design ficou por conta da Karine, da Lumen Design. O resultado é o que temos agora, um registro sincero e honesto das experiências de vida de uma mulher da Ilha, que me emocionou e que certamente vai emocionar muita gente.Nossa intenção era manter a narrativa o mais próximo possível da linguagem autoral, respeitando a ortografia e concordâncias. A diagramação e design ficou por conta da Karine, da Lumen Design. O resultado é o que temos agora, um registro sincero e honesto das experiências de vida de uma mulher da Ilha, que me emocionou e que certamente vai emocionar muita gente.” Encerra.

O audio-livro, intitulado O Mel da Ilha, publicado em julho deste ano, faz um resgate das histórias que a mãe Claudina, nascida em 1937, contava, sem muita habilidade com a escrita, e que Ángela achava tão interessantes que foram parar no caderno para que não se perdessem. Etel, que a incentivou a reorganizar os textos, aprofunda poeticamente os o contexto: “Adentremos o mundo das memórias de Claudina, relatadas pela voz de Ângela. Testemunhas da gênese de uma comunidade, são mãe e filha e contam uma só história, com suas intersecções e desdobramentos. Guardiãs da memória, muito mais que uma questão lingüística nós estamos perante a ameaça de extinção deste universo da oralidade de toda essa cultura, que sobrevive à margem da escrita”.

Continua Etel: ”Na corrida de revezamento, a filha apanhou a tocha da narrativa, transitou com ela entre descendentes e vizinhos e termina por transmiti-la à posteridade, chama acesa, através deste registro. É o portal que nos dá acesso a todo um universo que se mostra tão plural quanto singular é a mirada que o enxerga. Estão aqui todos os atributos e idiossincrasias da condição humana: o heroísmo do omisso, a omissão do corajoso, a crueldade do generoso, a generosidade do mau”.

*Dinah Ribas Pinheiro é jornalista e escritora, especialista em Jornalismo Cultural. Trabalhou por duas décadas na Assessoria de Imprensa da Fundação Cultural de Curitiba. Exerceu a mesma função na Escola do Teatro Bolshoi em Joinville. Assessora de Comunicação no BRDE e no espaço cultural do Palacete dos Leões. É autora dos livros “A Viagem de Efigênia Rolim” nas Asas do Peixe Voador e “Teatro de Bonecos Dadá-Memória e Resistência”.

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