segunda-feira, 20 outubro, 2025
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Cultura: Shakespeare e Dostoiévski, dois pensadores do Feminino

Dinah Ribas Pinheiro* – No meio da vasta programação cultural de Curitiba, neste segundo semestre, duas peças teatrais marcaram ponto nas salas da capital. Começo com a magistral criação do grupo teatral curitibano Ave Lola. Falo da montagem de Sozinho com Romeu e Julieta, em cartaz, com salas lotadas, nos meses de agosto e setembro no Guairinha e no próprio Espaço Ave Lola. Quem pensa que vai assistir a uma remontagem convencional do clássico de Willian Shakspeare fica perplexo ao ver um único ator encarnar todos os personagens do texto. O Jovem Evandro Santiago é muitos em cena. Sob a direção surpreendente de Ana Rosa Tezza, a encenação começa num espaço empoeirado, que sugere ter sido uma sala de ensaio abandonada, às pressas. O ator, solitário, entra no recinto e se põe a ler um livro envelhecido pelo tempo, com as páginas desfolhadas. Trata-se de uma cópia do clássico escrito pelo dramaturgo inglês, no século 16, um dos mais conhecidos de todos os tempos. No chão, ou em diversos suportes, há muitos adereços. São máscaras, figurinos, objetos variados.

O espectador permanece intrigado só até o momento em que Evandro é simbolicamente tomado pelo espírito shakesperiano e se põe a encenar, sozinho, no pretenso palco, o romance de Romeu e Julieta com a força e a habilidade que a tragédia exige. O instrumento principal é seu próprio corpo, sua voz e seu talento. Ele é Romeu, é Julieta, é Mercucio, é Teobaldo, os Montechio e os Capuleto com a mesma densidade camaleônica. Para ajudá-lo na performance, Evandro conta com as inúmeras guarnições disponíveis. Os bonecos e as máscaras são utilizados por ele como se fossem brinquedos, tamanha a sua habilidade na manipulação dos acessórios que se transformam em auxiliares reais como num passe de mágica. Aliás, tudo é mágico no espetáculo. O figurino assinado por Eduardo Giacomini e a trilha sonora de Arthur Jaime e Breno Monte Serrat transportam o espectador para um mundo fora da cena, com certeza a Verona onde Romeu e Julieta viveram o seu amor trágico.

Evandro se reinventa toda vez que ele personifica um novo sujeito. Sua desenvoltura, exercida à exaustão, surpreende do começo até o ápice da tragédia quando os dois jovens protagonistas decidem ir para outro plano onde possam ser felizes. Para os desavisados o espetáculo é simplesmente bonito, diferente. Para os mais exigentes a montagem é um grito de resistência. Como deixar que a arte seja minimizada, abandonada num porão irrespirável?

O ideal do artista enfrenta qualquer obstáculo. Para manter a chama do teatro acesa como uma lamparina, todos os recursos são válidos e possíveis. Na falta de outros atores, é preciso, mesmo solitário, ”sacudir, levantar a poeira e dar a volta por cima” como nos versos de Paulo Vanzolini.  É isso que Evandro, Ana Rosa e o Ave Lola deixam bem evidentes neste trabalho onde cada movimento, cada metamorfose alcança dimensões inimagináveis.

Espaço de Criação Ave Lola

Criado em 2010, O Malefício da Mariposa, primeira montagem do Espaço de Criação Ave Lola, texto de Federico Garcia Lorca, foi premiado, naquele ano, em oito categorias no Prêmio Gralha Azul, mais importante troféu de teatro do Paraná. No ano seguinte a trupe fez uma turnê por 24 estados a convite do Sesc. No site do grupo há uma síntese do sucesso meteórico da companhia.

Os processos da Trupe prezam pela insubordinação, pela liberdade, pelo inusitado. Ao longo dos últimos anos, o Ave Lola montou os espetáculos “O Malefício da Mariposa” (2012), “Tchekhov” (2013), “Nuon” (2016),  “Manaós – Uma Saga de Luz e Sombra” (2019), “Cão Vadio” (2021) e “O vira-lata (2022)” premiados e indicadas a importantes prêmios do Paraná e do Brasil, tais como Gralha Azul, Shell, Cesgranrio. Os trabalhos já circularam por todo Brasil, incluindo cidades fronteiriças do extremo norte. Eles também já estiveram em países como Chile e Dinamarca. As montagens de 2024 e 2025 também foram vistos pelo Paraná e interior do Brasil em turnês patrocinadas pelo Ministério da Cultura. O Cão Vadio se utiliza de contos fantásticos da América Latina numa linguagem de Cabaré. Sonhos de Uma noite de Verão, adaptada da peça de Shakespeare exibe uma versão popular da peça onde o público vai encontrar a paixão, a magia e a loucura. Em Sozinho com Romeu e Julieta o grupo se supera na criatividade e ineditismo.

Sonho de uma noite de verão. Foto: Caique Cunha

Todos os espetáculos contam com a direção de Ana Rosa Tezza. O portfólio virtual da companhia registra as atividades do Ave Lola. “A trupe constitui o cenário teatral da cidade de Curitiba com suas ações  como formação de platéia e utilização do sistema de pagamento pague o quanto vale. Além da realização de espetáculos acontecem oficinas de ações multi-artísticas, exposições, bate papos, lançamentos de livros, palestras e filmes. Em 2024, Vicent Mangado, músico francês do Théâtre du Soleil, considerado um dos grandes grupos do teatro contemporâneo, realizou um workshop cujo programa abordou as relações entre a música e o teatro.

Trupe Ave Lola de Teatro – 10 anos em 5 atos, projeto é idealizado por Larissa de Lima, coordenadora de áudio visual do grupo. “Contar a história do Ave Lola através da linguagem audiovisual é um mergulho intenso em um oceano de memórias. Cada episódio revela momentos diferentes e criam um espaço de reflexão sobre a arte como um lugar de resiliência” considera Larissa .

Atuando no seu próprio espaço, localizado na Rua Marechal Deodoro, o grupo é formado por Ana Rosa Genari Tezza, fundadora, diretora, dramaturga e atriz do grupo. O restante da equipe: Laura Tezza, fundadora e produtora executiva; Helena Tezza, fundadora e atriz; Dara Van Doorn, diretora de produção; Arthur Jaime e Breno Monte Serrat Moura, músicos e técnicos; Eduardo Giacomini, ator e figurinista; Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski, iluminadores; Alexandre Luft, técnico de luz e som; Gabriel Rischbieter, design e ilustrador; Carlos Becker, Matheus Boek e Alyssa Riccieri, produtores; Mateus Munhoz , departamento financeiro. Atores: Regina Bastos, Cesar Matheus, Evandro Santiago, Marcelo Rodrigues. Ane Adade preparadora corporal. Larissa Lima, coordenadora de áudio visual.

A Ressurreição de Nastácia

Nastácia. Foto: Guto Muniz

Na instalação Artística produzida pelo grupo teatral PyrAmo, do Rio de Janeiro, encenada em Curitiba no teatro da Caixa, Nastácia, personagem central de O Idiota, de Dostoiévski, tem um desfecho inesperado. Escrito em 1867, o romance, um dos mais importantes do autor, tem como cenário uma Rússia gigante, com muitos problemas sociais e uma classe dominante que ditava as regras. Nastácia Filippovna, jovem, bonita e desejada pelos poderosos vive um romance entre dois pretendentes: Perfén Rogójin, um homem ambicioso e sem princípios e o Principe Liév Michkin, com a saúde frágil, humano e de bom coração. A indecisão de Nastássia transforma o triângulo num jogo perigoso e fatal. Rogójin, resolve então dar um fim em Nastácia que num determinado momento se sente inclinada pela bondade e sinceridade do príncipe.

O jornalista Gustavo Cunha, do Jornal O Globo, descreve a personagem “Nastácia é uma figura emoldurada. Retratada em quadros, para onde os homens costumam fixar o olhar com admiração, a moça de beleza inegável tem a vida delimitada por arestas grossas: órfã, é abusada por um grão-senhor na infância, transformando-se, aos 12 anos, em concubina; já adulta, torna-se vítima de um amante paranóico e vive à sombra de uma tragédia iminente”.

Esse final previsível, nem por isso menos sinistro, aconteceu no romance escrito no século 19. Só que na remontagem contemporânea do grupo carioca, a dramaturgia lança mão da licença poética e apresenta um outro desfecho. O público é convidado a se dirigir para o saguão do teatro e lá encontra um leito de morte vazio. Nastácia é salva por si mesma mesma para dizer às mulheres do mundo inteiro que é preciso dar um outro final para os seus  destinos. O espetáculo que une o teatro a outras linguagens artísticas como instalação e videoarte, para contar a história de uma das mais instigantes personagens femininas da literatura universal, recebeu o prêmio Shell de melhor direção e participou do Festival de Avignon, na França. Com direção de Miwa Yanagizawa e dramaturgia de Pedro Brício, o elenco é composto por Flávia Pyramo, Julio Adrião (Chico Pelúcio) e Odilon Esteves.

Para Flávia Pyramo, idealizadora do projeto e intérprete de Nastácia, “a personagem simboliza a coragem e a resiliência de uma mulher que transformou a própria vulnerabilidade em potência, lutando por dignidade mesmo diante da violência mais cruel. Dar vida à Nastácia é habitar um corpo em sobressalto, com o coração acelerado e os olhos marejados. Sempre que me preparo para reencontrá-la, sinto um um sentimento avassalador percorrer cada parte de mim, porque a amo profundamente. Mas, ao mesmo tempo, vem a dor de um nó no estômago, pois sei que, ao contar sua história, estarei encarando os olhos de tantas outras mulheres que vivem essa tragédia real chamada violência doméstica”, comenta.

*Dinah Ribas Pinheiro é jornalista e escritora, especialista em Jornalismo Cultural. Trabalhou por duas décadas na Assessoria de Imprensa da Fundação Cultural de Curitiba. Exerceu a mesma função na Escola do Teatro Bolshoi em Joinville. Assessora de Comunicação no BRDE e no espaço cultural do Palacete dos Leões. É autora dos livros “A Viagem de Efigênia Rolim” nas Asas do Peixe Voador e “Teatro de Bonecos Dadá-Memória e Resistência”.

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