Dando continuidade à coluna da semana passada…
Pão e circo, sem dúvida. Mas havia sangue também. Eram estes ingredientes, com ênfase para o último, que levavam o público ao delírio no Coliseu de Roma. O que explica a besta que há dentro de nós sempre que uma partida de futebol acaba em quebra pau.
O fato é que os participantes dos “jogos” não estavam lá para brincadeira. Logo na apresentação do time, os gladiadores erguiam o braço direito e gritavam em coro: “Ave César, aqueles que vão morrer te saúdam”. Em latim soa melhor: Ave Caesar, morituri te salutant.
O Coliseu não era um sonho de edificação que almejava alcançar o céu, mas deixava rastros da Babel que estava por vir. Ainda que as ínsulas (prédios verticais precários) dominassem o entorno da cidade décadas antes do primeiro esboço do anfiteatro ser concebido, os romanos desacreditavam das residências em copropriedade. É surpreendente que não imaginassem o que estavam por vir quando as precárias construções de pavimentos sobrepostos gritavam o futuro das metrópoles.
Quando tratavam do assunto, as leis romanas eram tão ortodoxas quanto uma caixa de “maizena”, escrita com z. Aliás, a titularidade de um bem por mais de uma pessoa era assombrosa para os jurisconsultos, os homens da lei, retratados pelos escultores da época com um perfil que exigia sandálias, longos camisolões brancos e barbas longas e brancas, que eram cofiadas em intervalos curtos, caso estivessem pensando. Momento em que não poderiam ser interrompidos.
Caso alguém insinuasse que uma propriedade poderia ter vários titulares, eles rapidamente bradavam a incompatibilidade da ideia, com um latim vibrante: duorum vel plurium in solidum dominium vel possessionen esse non potest. O que significava que duas ou mais pessoas não poderiam, solidariamente, ser proprietárias de uma mesma coisa, fosse ela móvel ou imóvel.

Nem por isso se pode afirmar que o condomínio – e o condômino, por extensão – não tiveram uma gênese romana[i]. Lá estavam as habitações sobrepostas da Roma de um milhão de habitantes praticadas naturalmente pelos plebeus. Isso de acordo com as necessidades econômicas, sociais e ambientais que eram, por sua vez, controladas a ferro e fogo pelo pretor. Literalmente.
Em determinado momento do direito clássico romano, a propriedade e o uso do solo eram indivisíveis. Nada poderia ser sobreposto ao pavimento ou enterrado sob ele, inclusive os mortos, que não pertencessem a um dono exclusivo. Era o caso das ínsulas, inspiradoras dos condomínios modernos que, todavia, pertenciam a um único dono, que fazia dela o que bem lhe aprouvesse. Emprestá-la, cedê-la ou alugá-la a preços módicos ou nem tão módicos assim. As regras do mercado financeiro talvez não fossem tão rigorosas há dois mil anos, mas o denário, a moeda romana, poderia oscilar caso o imperador de plantão, e houve mais de 170 césares, resolvesse erguer um número exagerado de estátuas de si mesmo. Em tempo: denário significa dinheiro em latim.
A alvorada do condomínio é duvidosa, como já se afirmou, porque há intrigas demais quanto à origem do que está em sua essência: a propriedade particular. Há estudiosos que se baseiam em desenhos rupestres para sustentar que buracos compartimentados em uma encosta constituiriam a ideia de protocondomínios no período neolítico. Uma conclusão duvidosa. Ademais, é difícil conceber que uma tribo de neandertais ou homo sapiens cuidasse de sua própria vida quando as feras rondavam e decididamente o ser humano não estava no topo da cadeia alimentar. Se havia uma caverna para servir de abrigo, ninguém se dava ao luxo de erguer paredes ou um buraco à parte para determinar limites à sua moradia. Seria não só uma política de má vizinhança, mas um suicídio.
Na comédia “História do Mundo – Parte 1” (1981)[ii], dirigida por Mel Brooks, a suposição de que os homens constituiriam um condomínio com áreas exclusivas e áreas comuns é demolida quando o homem da caverna, motivado por seus companheiros, testa a lança com ponta de pedra em um amistoso morador do “buraco ao lado”. O resultado é um êxtase com os êxtase com os estragos que a arma pode causar ao espetar a barriga do outro e não com suas consequências mortais.

Claro, tudo gira em torno de uma sequência humorística, mas que tem lá seu fundo de verdade. Na ascensão do Império Romano, que contrapõe a civilização à barbárie e sedimenta a ideia de propriedade privada e, aí sim, de vizinhança, o conflito entre particulares não será resolvido com uma arma de pedra lascada, mas com regras que em nada diferem das convenções e dos regimentos internos contemporâneos. Por que encarar isso com aquele mau humor predominante em reuniões de condôminos ou em grupos de whatsapp?
Os direitos e deveres de um condomínio de 300 apartamentos são os mesmos de uma metrópole de 2 milhões de habitantes. Não nos enganemos. Condomínios são microcosmos das cidades, com a diferença favorável de que o morador pode ser o representante de si mesmo nas assembleias. Não é preciso delegar essa função, como ocorre nas democracias representativas. Nos municípios, é o vereador – o carimbador maluco de ruas – quem, em tese, ecoa a opinião dos eleitores que foram às urnas e sufragaram seu nome. Se tomaram antes um sal de fruta, é uma questão de foro íntimo.
Em Roma, no período de 450 a.C., a Lei das XII tábuas começou a ser aplicada com o propósito de resolver as disputas de uma cidade em crescimento. Um século antes, talvez menos, Moisés descia o Monte Sinai para apresentar, ao povo do deserto, os supostos dez mandamentos inscritos em duas tábuas. Sobre esse número, há controvérsias. No filme de Mel Brooks, já mencionado, o personagem bíblico, interpretado pelo próprio diretor, deixa a caverna com três pedaços de pedra, sinalizando que os mandamentos seriam 15. Por um acidente, entretanto, deixa cair uma tábua. O que haveria nas demais ordens expressas gravadas em fogo pela sarça ardente? Provavelmente a obrigação de comer brócolis às segundas, quartas e sextas, e de jejuar às terças, quintas e sábados. Domingo era reservado à missa. O Deus do velho testamento não estava para brincadeira.
As tábuas romanas eram o resultado de anos de confabulações jurídicas. Por qualquer motivo, um escravo, plebeu ou patrício, nessa ordem, poderia ser fustigado e precipitado do alto da rocha Tarpéia. Um devedor seria amarrado pelo pescoço e pés com pesos de até sete quilos. E se houvesse mais de um credor, o corpo do pobre seria dividido em várias partes ou então vendido a um estrangeiro como escravo. As audiências de julgamento e instrução eram sumaríssimas mesmo. O inadimplente era convocado ou levado à força, julgado pela manhã e sentenciado após o almoço sem qualquer pausa para o cafezinho ou para o desjejum.
No caso de vizinhos em disputa, as soluções vinham com mais temperança. A Tábua VIII dispunha que se uma árvore se inclina sobre o terreno alheio, seus galhos devem ser podados à altura de 15 pés (45 metros). Se caem frutos sobre o terreno vizinho, o proprietário da árvore tem o direito de colhê-los. E se a água da chuva é reaproveitada pelo vizinho e vem a causar danos ao terreno alheio, o outro é obrigado a reparar.
Substitua alguns termos do parágrafo acima por temas recorrentes de discórdia como carros, canos (vazamentos), cães e crianças e estaremos bem próximos de um condomínio contemporâneo em convivência risonha e sacudida.

Branda ou severa, a Lei das XII Tábuas serviu ao propósito de, entre outras coisas, pôr ordem nas disputas que envolviam a propriedade e a sucessão. Foi além. Instituiu a usucapião na Tábua VI, ao determinar que ele se daria após dois anos de posse em imóveis e um ano em móveis. Se uma mulher residisse com o homem por este mesmo período era adquirida por ele. Porém, caso se ausentasse por três noites, o “usus” seria interrompido sem mais delongas. Era um motivo e tanto para trancar a porta da frente.
Claro que isso não deve provocar espanto ou indignação. O homem romano – pater famílias – era dono da mulher, dos filhos, dos escravos, da casa, do terreno, dos cavalos, etc. e podia quase tudo. Afundar seus barquinhos de guerra na banheira, por exemplo, já era suficiente para um conflito familiar sem precedentes. Mas isso não significava atirar ninguém do alto da rocha Tarpéia.
E onde estavam suas limitações? Na propriedade de outro. O cidadão romano exercia o direito de propriedade sobre a coisa de modo exclusivo, absoluto e vitalício, salvo se houvesse condomínio ou servidão. Foi desse modo que se desenvolveu o conceito de copropriedade, erigido nas beiradas da legislação ou por tolerância desta, primeiro destinada aos plebeus, depois integrada à domus, a residência dos ricos ou remediados, em condomínios mistos que reuniam residência e comércio, sendo este último muito provavelmente explorado por um locador – pense em uma padaria, pense em um secos e molhados, pense em uma loja de lembrancinhas romanas, com facas, espadas, elmos e miniaturas de deuses pagãos para colecionar.
Todavia, a ideia de condomínio e, principalmente, de residências sobrepostas, teria ficado somente no papel, não fosse a engenharia e arquitetura romanas. Do pó ao barro, do barro ao cimento e às estruturas erguidas e fincadas no solo, o prédio foi possível.
Foi sob essa inspiração bíblica que Caio Mário Silva Pereira, um jurista mineiro, falecido em 2004, aos 90 anos, redigiu a Lei dos Condomínios, aprovada em dezembro de 1964. Na exposição de motivos, ele descreve o que parece uma Babel concretizada:
Procurando, de seu lado, emergir à tona desta inundação de desconforto, o indivíduo concebeu uma nova técnica de construção, que permitisse o melhor aproveitamento dos espaços, e a mais suportável distribuição de encargos econômicos, e lançou o edifício de apartamentos.
Projetou para o alto as edificações, imaginou acumular as residências e aposentos uns sobre os outros, criou o arranha-céu, fez as cidades em sentido vertical e, numa espécie de ironia do paradoxo, apelidou-a propriedade horizontal, em razão de o edifício achar-se dividido por planos horizontais.
[i] PEREIRA, C.M. da S. Condomínios e Incorporações. Rio de Janeiro, Forense, 1977.
[ii] HISTÓRIA DO MUNDO PARTE 1 – clique aqui
Marcus Gomes é jornalista e advogado. Escreve sobre política, direito e assuntos do dia a dia.